Ontem, Mário Centeno ensinou aos estrangeiros que o Portugal de hoje já não é o de 2012. Pois não é. Entretanto, Passos Coelho preveniu a bancarrota preparada por Sócrates, e em 2015 entregou a António Costa uma economia a crescer novamente e um Estado em situação de aproveitar o financiamento do BCE. Desde então, houve uma grande mudança em Portugal, que se pode resumir assim: em 2012, o Estado ainda era para todos; desde 2015, deixou de ser.

Em 2015, os partidos da actual maioria sofreram enormes decepções. PCP e BE descobriram que nem quatro anos de austeridade eram suficientes para fazer deles um Syriza ou um Podemos. Para Costa, foi pior: perdeu umas eleições que todos lhe diziam que venceria facilmente (a 12 de Março de 2015, as sondagens prometiam 36% ao PS e 26% ao PSD). Mas como o ajustamento deixara muita gente zangada, os derrotados viram-se em maioria no parlamento, e aproveitaram para se agarrar ao Estado. Durante um ano, especulou-se sobre eleições antecipadas. Mas Costa e os seus parceiros não confiam no eleitorado. O plano é outro: fazer do Estado o último bunker das suas ilusões e ganâncias, com uma fúria que há pouco transpareceu na Guarda.

O governo de Costa é mais uma prova de que os populistas têm razão: é possível mandar num país favorecendo uma parte desse país contra a restante. Com António Costa, chegou ao fim uma certa concepção do Estado em Portugal: o Estado como entidade imparcial e inspirada pelo bem público. Hoje, o Estado tomou partido por alguns grupos, e serve os seus interesses privados.

Segundo o Conselho das Finanças Públicas, o investimento público desceu em 2016 ao seu nível mais baixo dos últimos vinte anos. Foi assim que o governo compensou o aumento das pensões e dos salários mais altos do funcionalismo público, de modo a dar à Comissão Europeia um défice que justificasse a ajuda do BCE. Por todo o lado, o Estado é hoje um conjunto de histórias de cortes de “consumos”, de atrasos de pagamentos e de serviços em degradação. O governo tem calado as queixas de modo implacável, como aconteceu no caso do Gabinete de Prevenção e de Investigação de Acidentes com Aeronaves: o responsável protestou, e foi afastado. Mas talvez nem fosse preciso. Com as tradicionais carpideiras do Estado social quietas na rua e caladas nos estúdios, é possível sacrificar a “qualidade dos serviços públicos” no altar das clientelas.

Tínhamos um Estado social. Com Costa, temos um Estado clientelar. O Estado social existia para garantir ou prestar certos serviços; o Estado clientelar existe para dar empregos, contratos e regalias, e assim inspirar gratidão política entre os seus dependentes. E nunca a situação foi tão propícia a esta manobra, com uma população envelhecida e endividada, empresas descapitalizadas, corporações assustadas, sindicatos a perder sócios e partidos a perder eleitores. O Estado clientelar aparece-lhes como a salvação. Pelo menos, enquanto o BCE continuar a comprar dívida portuguesa.

Outra coisa também mudou: o constrangimento fiscal e regulamentador do trabalho e do investimento em Portugal agravou-se. Mas esse constrangimento não é neutro: é o mecanismo de protecção que o Estado mantém a favor de certos grupos de interesse, o qual gera um custo que tem de ser suportado por toda a sociedade. É esse o problema da economia portuguesa. Para o resolver, seria preciso um Estado viável e inspirado pelo bem público, que deixasse de ser um mero protector de clientelas. Mas essa protecção é hoje a chave do poder no novo Portugal de António Costa e de Mário Centeno.

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