A palavra sionismo arde nalguns espíritos como o dinheiro queima nas mãos dos perdulários. Ao contrário dos avaros, que fruem abstractamente o poder nunca concretizado, os perdulários sentem um apetite desenfreado pelo acto de comprar, convertendo o valor abstracto em bens concretos. À imagem destes, aqueles espíritos convertem o termo sionismo, de que se querem rapidamente desembaraçar, em colonialismo, apartheid e fascismo.

O termo sionismo, considerado em si, remeteria para a história da libertação de um povo, o que significaria considerá-lo em pé de igualdade com os outros povos, e, em especial, com os povos que se emanciparam da tutela alheia, ou seja, que deixaram de ser objecto e passaram a ser sujeitos de pleno direito. Politicamente, a maioridade traduz-se no Estado, entendido, assim reza uma definição prestigiosa, como o monopólio da violência legítima num dado território. Significa isso que o uso da força num Estado – em qualquer Estado – está sujeito a uma avaliação moral, pode ser bom ou mau, avaliação essa, no entanto, que não se impõe como uma evidência apodítica. Varia não só consoante o observador como também consoante a história, uma vez que as consequências dos actos se reflectem retroactivamente no seu sentido. Ora, a variabilidade das avaliações implica e ratifica precisamente a permanência da instância soberana que lhe subjaz. O anti-sionismo pretende o contrário. Pretende a fixação de uma só avaliação, a negativa, de modo a erodir a legitimidade do Estado de Israel como um Estado entre os demais.

O anti-semitismo de direita não depara com nenhum obstáculo específico: o sionismo é mau por definição, na medida em que é tão-somente uma das declinações do mal essencial do judeu. Por conseguinte, não necessita de o travestir e desfigurar recorrendo a hipérboles; aliás, nenhuma alcançaria a generalidade máxima do mal – munido do mais, dispensa o menos. Para o anti-semitismo de esquerda, as coisas são menos simples. E mais insidiosas. Começa por assimilar o sionismo às figuras tradicionais do mal, sendo que nenhuma se aplica a Israel. O colonialismo pressupõe uma metrópole e um império, consabidamente no caso de Israel não existe nada de remotamente semelhante. O apartheid tal como instituído na África do Sul impunha uma segregação racial, que haveria de dar lugar, e deu, a uma sociedade de convivência multirracial; a solução árabe, pelo contrário, nunca pretendeu integrar os judeus mas, no mínimo, expulsá-los (from the river to the sea…); já Israel acolhe judeus e árabes. Quanto ao fascismo de que se acusa o governo de Israel, não passa, claro está, de uma quimera. Não só a coligação no poder é politicamente diversificada, como não foi abolida a pluralidade política e a estrutura institucional que lhe dá forma, nomeadamente as eleições democráticas. Os factos são conhecidos – oculos habent et non vident.

Se a esquerda tem necessidade de revestir o sionismo com vestes tão lúgubres é para se apresentar lógica e humanisticamente como anti-sionista, nesse sentido a criação do Estado de Israel perde o elemento comum que tinha com os restantes povos oprimidos e passa a Estado opressor. Não por acidente, mas por essência. Por outras palavras, os judeus, quando se organizam como Estado territorial, são por definição opressores. Assim, não pode existir um Estado judaico igual aos outros, isto é, que umas vezes aja bem, outras mal – mas que nessa mudança permaneça como Estado, uma visão das coisas consagrada no rifão my country, right or wrong. O anti-sionismo de esquerda logra assim deslegitimar qualquer uso da força por parte de Israel, porquanto, por essência, se trata sempre de um uso extremo, entenda-se reprovável porque desumano, e transforma Israel num Estado impossível na medida em que é esbulhado do atributo de todos os outros Estados: o uso da força. Desse modo, o anti-sionismo de esquerda transfere para a figura do Estado o que o anti-semitismo de direita atribui sem pejo ao judeu, e, assim, come a dois carrilhos: salvaguarda a sua auto-compreensão como não anti-semita, apanágio da direita desprezada, mantendo por essa via a sua superioridade moral, que, no mesmo passo, é insuflada pela possibilidade de se solidarizar com os oprimidos árabes; sendo estes económica e tecnicamente subdesenvolvidos em comparação com Israel, o anti-sionismo de esquerda anexa suplementarmente a margem de manobra necessária à cartada anti-capitalista. A dissociação entre judeu e sionista permite à esquerda progressista solidarizar-se com o judeu na figura do oriental no Ocidente e condenar o sionista como o ocidental no Oriente: nos dois casos instrumentaliza a história dos outros para expiar a sua própria história e justificar-se. Ao outro lado, e depois de separar sionismo e judaísmo, o anti-sionismo de esquerda vai buscar o alívio dos sofrimentos morais europeus causados pelas torturas e sofrimentos, bem reais, infligidos aos judeus, posto que continua a declarar-se solidário com as vítimas do nacional-socialismo, o mal absoluto. Mas também aqui projeta uma luz demasiado forte a fim de ofuscar os espíritos, o que se mostra à saciedade, por exemplo, no uso do termo holocausto para significar o mal por antonomásia, despindo o termo de toda e qualquer acepção histórica, anulando a experiência judaica europeia, que passa a um mero caso entre outros de um mal que nasceu e cresceu especificamente para o extermínio do povo judeu. Em alguns usos do termo, chega-se mesmo a uma duplicidade perversa e infame, que torna quase impossível avaliá-los num quadro de normalidade semântica, e até psiquiátrica, roçando, mas só roçando, a inimputabilidade.

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Parece, no entanto, e em política nem a ignorância nem a ingenuidade são circunstâncias atenuantes, que não se dá conta que, abolindo sub-repticiamente a possibilidade de o Estado de Israel alguma vez se defender como qualquer outro Estado, torna-o um Estado pária, como pária era o judeu minoritário nos Estados que o discriminavam. E tal como, inerme e sem uma terra só sua, o judeu foi um mero joguete desvalido e exposto passivamente ao arbítrio alheio, que o usou como um factor inerte no jogo dos interesses – e das taras – internos de cada país, uma condição que foi meio caminho andado para a tentativa do seu extermínio, o abandono de um Estado tornado pária pela deslegitimação da sua força territorial produz o mesmo efeito, noutras paragens e com outros carrascos voluntários. Não é por acaso que se generalizou a referência aos acontecimentos de 7 de Outubro de 2023 como um pogrom, a caça ao judeu desarmado, que não tem armas porque não as pode ter legalmente – trata-se de um caso clássico de «processo de situação». A aplicação do termo ao ataque do Hamas ratifica desde logo a condição de Israel como pária no concerto das nações.

O anti-sionismo de esquerda, tendo atribuído a reacção árabe à acção israelita, proíbe-se a si mesmo de pôr a questão de uma responsabilidade árabe e mantém apenas Israel como o único culpado do que lhe possa acontecer. Mata dois coelhos de uma cajada só. Em ambos casos incorre numa contradição indirimível, mas de sinal contrário. Pretende essencializar o árabe como sujeito meramente reactivo, incapaz de iniciativa por si, de ponderar prós e contras relativamente aos seus interesses e projectos. O árabe, ou o oriental, é inocentado – literalmente, uma vez que o termo significa privação da capacidade de prejudicar (do latim nocere) – a expensas de uma amputação: é só meio sujeito, sendo a parte que lhe cabe totalmente boa. Por outras palavras, é bom porque é incapaz de agir; obtém-se a sua pureza a troco da sua degradação. A sua reactividade apela, aliás, ao mito da espontaneidade das massas, que não podem querer o mal, mas são forçadas a agir pelos abusos de que são vítimas. Depois de o proletariado ter sido integrado nas sociedades capitalistas, os povos do Terceiro Mundo constituíram para a esquerda progressista o novo sujeito revolucionário, com inúmeras vantagens, desde o exotismo até à sua diversidade tida tacitamente, por natureza, como compatível entre si, uma vez franqueado o mínimo denominador comum de oposição a Israel.

Para Israel repete-se o mesmo procedimento num espelho igualmente deformador, porém, em sentido contrário. Significa isso que as violências sofridas por Israel se deduzem do facto de ter abandonado a sua condição de espectro, de judeu errante, de Luftmensch, e se ter fixado como um povo estatalmente organizado. Expulsa pela porta, regressa pela janela a velha contradição do anti-semitismo: o judeu tem de ser livre para ser responsabilizado, mas só pode ser livre para o mal, o que o desresponsabilizaria. A sua liberdade é comprada por um preço exorbitante: o mal. Uma degradação que é exacto oposto daquela a que foi submetido o árabe, ou o oriental. Com consequências opostas: um é passivo, logo não é preciso agir; mas o outro, o outro é a substância activa do mal, deve ser eliminado. O sionismo tem de ser um agente livre para ser julgado e condenado, mas só pode ser livre de modo negativo: é sempre colonialista, segregador, fascista. Na contradição revela-se não o judeu mas quem o descrimina (e o mesmo se aplica às descriminações com base em características dadas por natureza, o negro por exemplo), dado que é no último que reside a contradição: justifica-se este na acusação, que pressupõe a liberdade, mas no seu desejo de pureza absoluta separa-se absolutamente do judeu, recusando-se assim a ver a condição comum da humanidade. Como também se separa do árabe. Neste sentido, o anti-sionismo de esquerda e ocidental, em delírio agudo, revela-se como um anti-semitismo elevado ao quadrado; alcança o paroxismo da perversidade ao entregar à morte, por interposta pessoa, os judeus, conservando as mãos limpas, dá-se a si mesmo um banho lustral que elimina a contradição: uns agem porque são maus, os outros reagem porque são bons.

Feito o ajuste de contas, como se se tratasse do balanço contabilístico de um processo natural de deve-haver, restaria a entropia, com a esquerda progressista erigida em sujeito único e divino no mundo; gnóstica, substancializa-se fora da História. Exterioriza o mal; para se salvar egoisticamente, reifica os outros a coberto de uma candura que ela – e só ela – julga sua. Os acontecimentos de 7 de Outubro de 2023 deveriam tê-la despertado como um soco no estômago. Deveriam.