Uma família em isolamento, dia 13

“Pai, afinal já se pode sair de casa! Tinhas dito que não.”

Estávamos a meio de uma chamada de vídeo com alguns amigos, com o monitor do computador dividido em mosaicos do Zoom que nos traziam sorrisos familiares de Madrid, de Barcelona, do Porto, de Espinho, de Palmela, de Corroios e da Amadora. Uns falavam por cima dos outros, havia gargalhadas, piadas e novidades que se trocavam, umas vezes o som entupia, outras vezes o wifi de alguém engasgava-se e pelo meio havia vozes de crianças a pedir atenção aqui e ali.

Não sei quanto tempo levávamos de conversa, mas chegámos entretanto às 20h00 e arrancaram os noticiários nas TV. O televisor estava ligado, o volume cortado, mas íamos vendo as novidades da covid-19, o resumo do dia, os números, a conferência de imprensa da hora de almoço. E depois entraram aquelas imagens. As mesmas que eu já tinha visto durante a tarde nas redes sociais e nos sites de informação, mas agora com calma, explicadas, enquadradas. Mas o televisor sem som. E veio a pergunta.

“Pai, afinal já se pode sair de casa! Tinhas dito que não.”

Espera filha, agora estamos a falar com os amigos, já te explico o que foi aquilo. “Mas onde é que vão aquelas pessoas todas? E por que é que está ali a polícia?” Já falamos, prometo. Quando acabarmos de falar com os amigos, olha tanta gente, agora não, se calhar desligamos a televisão, espera, já são estas horas, deves estar com fome, queres comer alguma cosia enquanto o jantar não está pronto?

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Enrolei. Adiei. A coisa passou. Por minutos.

Quando a chamada finalmente acabou e cada um voltou à sua vida, a pensar que temos de repetir isto e que as saudades não se matam assim mas sempre as atordoamos, quando peguei no comando levantei o volume do televisor, quando começámos a pôr os pratos na mesa e a temperar a salada, quando dissemos às miúdas para irem lavar as mãos antes da refeição, quando a normalidade voltou a um fim de sábado de primavera, em período de recolhimento voluntário, quando o mundo enfrenta uma pandemia e há pessoas a morrer, quando tudo isso aconteceu, veio novamente a pergunta.

“Então, já me podes explicar porque é que nós não podemos sair e aquelas pessoas podem?”

A Carolina tem 7 anos e está há duas semanas fechada em casa sem ir à escola. Sai por períodos muito curtos, para fazer a fotossíntese e esticar as penas (tal como está previsto na lei), mas sabe sempre a pouco. Quinze, vinte minutos de cada vez não chega. Mas tem de chegar. E tal como a irmã, Madalena, de 6 anos – e tal como todas as crianças de todos os pais que todos os dias dão voltas à cabeça durante estes tempos para conseguirem manter os filhos entretidos – tem momentos de frustração. De irritação. De birra. De incompreensão. De medo. De dúvida. E somos nós, os adultos, as pessoas de referência na vida destas duas miúdas, que temos de explicar e acalmar, de enquadrar, de dizer que os crescidos estão a tratar de tudo, que toda a gente está mobilizada, que a mãe enfermeira e todos os colegas dela estão a trabalhar para que isto passe depressa. Que também há médicos, políticos, polícias, bombeiros, carteiros, vendedores de jornais, condutores de transportes públicos, muita, muita gente que gostava de estar em casa, tal como nós, mas não pode e tem de continuar a trabalhar para que o país não pare. E temos de lhes agradecer. E por isso é que batemos palmas à janela e desenhamos arco-íris e acreditamos que, se cada um fizer a sua parte, isto vai passar mais depressa e em menos de nada elas vão voltar à escola e aos amigos e às professoras de quem têm tantas saudades.

Todos os dias lembramos que só temos de ficar cá dentro para que as pessoas que têm de estar lá fora possam fazer o trabalho delas. Todos os dias temos de explicar, por palavras que as crianças entendam, frases como esta, que ministra da saúde, Marta Temido, disse ontem: “o número de doentes que iremos ter depende do comportamento de cada um de nós”. Todos os dias damos a volta à cabeça para mostrar que “cada um de nós” tem uma responsabilidade nisto.

E depois… depois faltam-me as palavras para explicar à minha filha que filas grandes eram aquelas nos acessos à Ponte 25 de Abril. Que pessoas são aquelas – não muito diferentes das que na semana passada encheram a marginal de Vila do Conde e da Póvoa de Varzim – que querem tanto e precisam tanto de sair de casa e passear que estão disponíveis para se colocar em risco, a elas e aos outros, e, assim, contribuir para que isto não passe. Para que isto continue muito mais tempo. Para que isto possa descambar e a puta da curva nunca mais achate porque algumas pessoas precisam mais de passear do que outras. É difícil justificar isto.

Mas ontem, ao jantar, tive de tentar explicar à Carolina que muitas das pessoas que vimos na televisão, interpeladas pela polícia, vivem na margem sul e regressavam a casa depois do trabalho, ou iam trabalhar, ou tinham familiares que precisavam de assistência tal como os avós precisam que nós façamos as compras, ou tinham razões mesmo, mesmo, mesmo importantes para sair de casa e colocar outros em risco. Tive de explicar que nem todos são insensíveis e irresponsáveis, que nem todos são egoístas ou pouco informados, que nem todos acham que são mais do que os outros e que nem todos fizeram um erro e agora estão arrependidos.

Se a Carolina fosse mais velha e tivesse acesso às redes sociais, teria de lhe explicar também que a quantidade de coisas que se escreveram ontem e se vão escrever hoje sobre essas pessoas se devem à enorme frustração que nós sentimos – nós, que sabemos que temos de ficar em casa, que sabemos que não é por estar sol que podemos correr riscos e colocar outros em perigo.

Se a Carolina fosse mais velha, teria de lhe tentar explicar que esse discurso de estarmos todos juntos se calhar não é bem assim. Se calhar não queremos todos o mesmo. Uns querem que isto passe e fazem o que for preciso. Outros querem que isto passe mas não são capazes de ficar em casa porque está sol.

Ontem, na chamada de grupo que fizemos ao fim do dia, juntando amigos em geografias distintas, faltava o Vítor, que é enfermeiro, e faltava a Paula, que é médica. Estão ambos longe da mulher, do marido, dos filhos, a viver noutras casas, porque a profissão que têm os coloca em risco e não querem contaminar as pessoas que mais amam. Eles não sabem quando é que poderão voltar para casa, mas uma coisa sabem: quanto mais pessoas fizerem o que tentaram fazer ontem a caminho do sul, mais tempo isto vai demorar. E mais gente vai morrer.

É muito difícil explicar tudo isto a uma criança de 7 anos.

Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):

Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?

Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?

Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai

Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.

Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal

Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais

Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp

Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha 

Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?

Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado

Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas

Dia 12. Agenda da quarentena: às nove no Instagram ou às dez no Skype?