Uma família em isolamento, dia 12

—   Olha, sempre estamos combinados para logo às sete? Eu, tu e o Miguel? Já não falamos há imenso tempo. Não é a mesma coisa, mas falamos à distância. Usamos o Facetime?

—   Sim, sim. Tudo ok. Espera! Logo? Logo não. A essa hora tenho uma aula de Pilates num live do Facebook. Já tenho marcado há uns dias.

—   Então mas tu é que disseste às sete. Foste tu que marcaste.

—   Eu disse às sete, mas da manhã. Não era logo. Não era às 19h00. Sete da manhã de amanhã.

—   Às sete da manhã?! Vamos fazer uma chamada de grupo às sete da manhã?! Mas quem é que está acordado a essa hora? Só se for para trabalhar. ‘Tás doido?

—   Eu acordo todos os dias às seis e meia. Durante a semana às sete tenho yoga pelo Instagram.

—   Certo. Isso és tu. Eu não acordo a essa hora a um domingo para uma chamada de grupo com amigos. E o Miguel também não. Esquece. E em vez de ser às sete (da tarde!!), se for logo às oito? Podes

—   Às oito tenho um jantar com os meus irmãos. Pelo Join.me. É um programa que eu não conhecia. Vamos jantar de propósito para o experimentar.

—   Isso acaba tarde? Vais estar duas horas a comer virado para um computador? Se fosse às dez? Da noite! Às 22h00!

—   A essa hora vamos bater palmas à janela? Tu não vais?

—   Bater palmas? Hoje à noite? A quem é que vais bater palmas desta vez?

—   Aos motoristas de Uber. Hoje é um aplauso para agradecer aos condutores dos Uber.

—   Isso não é parvo? Bater palmas aos profissionais de saúde, está bem. Mas aos motoristas de Uber? Onde é que viste isso?

—   Tenho um grupo no Facebook. Chama-se “Um aplauso por dia, nem sabe o bem que lhe fazia”. Eu adiciono-te. Já batemos palmas aos padeiros, às pessoas que recolhem o lixo, aos farmacêuticos, aos polícias, às pessoas dos quiosques e aos carteiros. Hoje à noite vamos bater palmas aos condutores de Uber. E taxistas também.

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—   A tua agenda em tempo de quarentena é muito preenchida. Olha lá, e se for amanhã ao fim da manhã?

—   Ao fim da manhã… Às onze tenho um workshop de origami pelo Zoom e ao meio-dia e meio vou aprender a saltear cogumelos numa aula de cozinha. Acho que é por skype.

—   Mas tu não gostas de cogumelos.

—   Pois não. Mas é ao longe e é pelo écran, por isso não me faz impressão.

—   Tu és muito complicado. Tenho de falar com o Miguel para saber quando é que ele pode e depois falamos. Não sei se ele pode amanhã à tarde.

—   À tarde vou a um casamento.

—   Vais a um casamento?

—   Sim. O Pedro e a Carla vão casar. Estão fartos de esperar. E têm medo que aconteça alguma coisa, querem despachar já isto.

—   Mas ninguém pode sair de casa. Como é que vais a um casamento?

—   Não é ir, ir. Não vou mesmo. É pelo House Party. Já descarreguei. Não dá para atirar arroz, mas podemos fazer barulho. Até vou vestir um fato novo, que comprei online.

—   A que horas acaba a porra do casamento? Podemos falar à tarde?

—   Desculpa, isto está complicado. A essa hora devo estar bêbado e com a gravata na testa. Faço sempre isso nos casamentos.

—   E hoje? Hoje à tarde?

—   Nem pensar! Hoje vamos cantar músicas do festival da canção à janela. Não recebeste o convite? Vai ser no Instagram.

—   Isto está complicado.

—   Não é preciso, vamos conseguir arranjar agenda. O que é que fazes segunda-feira de manhã? Se fosse cedinho?

—   Às nove tenho terapia. Falo com a minha psicóloga. Pelo skype.

—   E ao fim do dia? Eu tinha aqui uma aula de desenho pelo Microsoft Teams, mas acho que foi desmarcada.

—   É melhor ser à hora de jantar, é mais seguro.

—   A minha irmã faz anos. Vamos cantar os parabéns pelo Messenger.

—   E amanhã à noite?

—   Vou assistir a um concerto. Pelo Instagram.

—   Se calhar adiávamos isto.

—   É melhor. Marcamos depois para mais tarde, quando estivermos mais livres.

Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):

Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?

Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?

Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai

Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.

Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal

Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais

Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp

Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha 

Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?

Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado

Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas