No âmbito das sanções contra a Rússia, a presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen anunciou que a Russia Today e a Sputnik, assim como as respectivas filiais, controladas pelo Estado russo, ficam proibidas no espaço da União Europeia. A decisão é compreensível no contexto da invasão russa da Ucrânia e da grande tensão entre UE e Rússia, mas nem por isso deixa de ser uma decisão errada e preocupante. Em contexto de conflito e de alta tensão o sentido crítico naturalmente diminui e a propensão para respostas emocionais aumenta: por isso mesmo é ainda mais importante reafirmar e defender na esfera pública princípios basilares da democracia liberal e do Estado de Direito como é o caso, inequivocamente, da liberdade de expressão.

Antes de mais, importa clarificar que a crítica à censura na UE não deve ser confundida com uma defesa das agências e dos orgãos de comunicação social ao serviço do Estado russo. Qualquer observador minimamente imparcial não pode deixar de concluir que os orgãos em apreço são efectivos instrumentos de propaganda ao serviço da política externa do governo russo. São aliás instrumentos pouco subtis a esse respeito. Basta assistir a algumas horas de emissão de um dos canais Russia Today para perceber que o denominador comum no leque eclético de peças e comentadores apresentados (que vão da extrema-esquerda à extrema-direita) é a descrição do declínio ocidental e a repetição dos principais talking points do Kremlin. Pelo meio há ainda tempo para tentar passar a imagem de Putin como líder sóbrio, civilizado e cristão em contraste com o referido declínio ocidental – um exercício ambicioso considerando que a Rússia é um país com uma economia débil, em declínio demográfico e com níveis altíssimos de alcoolismo e aborto.

Mas a natureza objectivamente propagandística da Russia Today e da Sputnik não justificam a sua proibição. É um erro e um precedente perigoso atribuir à UE o poder de decidir a que conteúdos devem os cidadãos europeus poder ou não aceder com base em critérios políticos. Não devem ser políticos nem burocratas a decidir o que as populações podem ou não ver por mais propagandísticos que sejam os canais ou conteúdos em causa. Mais: a liberdade de expressão como princípio visa precisamente garantir a possibilidade de difundir perspectivas impopulares ou consideradas indesejáveis pelos governos. É a partir da exposição e do confronto entre diferentes perspectivas que as sociedades livres podem formar opiniões públicas plurais e informadas – e é essa a melhor defesa contra todos os totalitarismos.

A censura é também em geral contraproducente: por mais extremistas e repugnantes que sejam as perspectivas políticas, é útil que sejam publicamente expressas, registadas e conhecidas. É muito útil por exemplo que seja público e o mais difundido possível o comunicado do PCP de 22 de Fevereiro, salientando que os “desenvolvimentos recentes são inseparáveis de décadas de política de tensão e crescente confrontação dos EUA e da NATO contra a Federação Russa” e que a situação na Ucrânia “não pode ainda deixar de ser dissociada do golpe de Estado de 2014, promovido pelos EUA, a NATO e a UE, protagonizado por grupos fascistas, e que levou à imposição de um regime xenófobo e belicista, cuja violenta acção é responsável (…) pela deflagração da guerra naquele País”. Ou que a deputada bloquista Mariana Mortágua tenha tido oportunidade na SIC Notícias de se referir ao executivo liderado por Zelensky como um “governo de extrema-direita com fascistas dentro do seu governo” e de explicar que “o que está em causa é a Rússia a ser espremida no seu espaço de influência porque é uma potência em declínio” e que “o que está em causa para a Rússia é a segurança do seu espaço e da sua fronteira”. Permitir a livre expressão pública dos inimigos da liberdade possibilita que as suas posições sejam escrutinadas e faz também com que não haja desculpas para todos quantos insistem na tentativa de os normalizar.

Como é igualmente útil que sejam difundidas as declarações do capitão do exército Jair Bolsonaro afirmando a neutralidade do Brasil e declarando que os ucranianos “confiaram o destino de uma nação a um comediante“. Uma postura que aliás resulta num curioso alinhamento de posições entre PCP, BE e Bolsonaro. De forma similar, se não tivessem sido públicas e difundidas as reuniões, elogios mútuos e abraços (quando o presidente russo ainda dava abraços) entre Le Pen e Putin e entre Salvini e Putin não seria possível hoje denunciar a inconsistência nas respectivas declarações de solidariedade com a Ucrânia por parte dessas figuras.

Em resumo, as decisões censórias anunciadas pela Comissão Europeia são erradas do ponto de vista dos princípios, contraproducentes e um precedente perigoso para a liberdade dos europeus. Resta fazer o possível para que a censura agora instituída na UE seja de curta duração e o erro seja corrigido em breve.

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