Ver os bancos centrais envolvidos no debate sobre quem está a alimentar mais a inflação, se os trabalhadores se os capitalistas, é muito interessante. O BCE, a Reserva Federal e o Banco de Inglaterra desdobram-se em dados e avisos, agora menos dirigidos aos salários e mais concentrados nas margens de lucro das empresas.
“Parte das pressões inflacionistas podem de facto dever-se a um maior poder de mercado das empresas”, disse ao Financial Times Isabel Schnabel, membro da comissão executiva do BCE e que faz parte do grupo dos considerados “falcões”, ou seja, aqueles que mais defendem a subida dos juros. Também Fabio Panetta, outro membro da Comissão Executiva do BCE, se referiu ao peso das margens de lucro na subida da inflação, numa entrevista ao New York Times.
O próprio BCE divulgou um trabalho, “How tit-for-tat inflation can make everyone poorer”, com dados a mostrar que, embora os custos unitários do trabalho e os lucros unitários tenham participado para a subida de preços (medida pelo deflator do PIP), o contributo dos lucros foi de mais de metade. E na desagregação por sectores, é na agricultura e na energia que se identifica uma maior subida dos lucros. Não há dados conhecidos para Portugal, embora o Banco de Portugal os pudesse ter construído, mas se o fez não os divulgou.
Há vários factores que podem explicar este contributo mais significativo para a inflação por parte dos lucros por unidade de produção – ainda que mais limitado do que se poderia esperar. A primeira explicação é que a alteração de preços se faz muito rapidamente, podendo as empresas subi-los de um dia para o outro ou no máximo de um mês para outro. Em contrapartida a subida dos salários é sempre menos imediata, passando por processos negociais que podem ser longos.
Em segundo lugar, assistiu-se nos últimos anos a um reforço do poder de mercado das empresas em alguns sectores – veja-se em Portugal os casos da grande distribuição, das telecomunicações e, no mundo, o sector automóvel. Paralelamente, o poder negocial dos trabalhadores diminuiu, com os sindicatos a terem hoje muito menos capacidade reivindicativa do que tinham no último surto inflacionista que ocorreu na década de 70 do século XX.
Há ainda outros pormenores no caso da indústria automóvel, onde as empresas optaram por dar prioridade à produção de automóveis mais caros que lhes davam mais margem de lucro, na fase ainda não terminada de escassez de chips.
Mas o que é também interessante neste tema é ver os bancos centrais a envolverem-se no debate de Capital versus Trabalho, tanto mais que as diferenças nos contributos para a inflação não são assim tão significativos. Uma explicação possível é o BCE, como os outros bancos centrais, estarem a usar o discurso para alterarem as expectativas e os comportamentos das empresas, no limite pressionando-as a limitar a subida dos preços.
Na verdade, a inflação entrou numa fase de risco de auto-alimentação, a tal espiral inflacionista de que falam os economistas. Se cada parte aceitar uma parte da perda de poder de compra sem a tentar recuperar, consegue-se controlar a inflação sem aumentar tanto as taxas de juro. E é isso que os bancos centrais estão a tentar evitar: aumentar muito as taxas de juro. Por várias razões, a principal das quais é evitar a inflação, mas também existe o medo dos efeitos num sistema financeiro hoje maior e mais complexo do que nos anos 70 do século XX.
O sistema financeiro em geral e a banca em particular pode não aguentar, sem um abalo sério, uma subida muito significativa dos juros. O primeiro sinal foi já dado pelos bancos norte-americanos e, de alguma forma, pelo Credit Suisse, lançando o nervosismo nos banqueiros centrais. Na sequência disso tornaram-se mais audíveis aqueles que criticam a rapidez e dimensão com que os juros têm aumentado na Zona Euro e nos Estados Unidos. Entre eles o próprio governador do Banco de Portugal Mário Centeno, ao pedir paciência aos bancos centrais, para se avaliar os efeitos dos aumentos realizados até agora – que podem ainda não ser visíveis.
Depois existem os casos dos países, como Portugal ou a Finlândia, onde é muito significativa a ligação entre a subida da taxa de juro e o aumento da prestação da casa comprada com crédito. Além da inflação, boa parte das famílias desses países vêm a sua prestação da casa aumentar bastante, vivendo um aperto financeiro maior do que o de países onde isso não acontece. Ou seja, a política monetária é mais restritiva para países como Portugal e pode causar mais danos aos bancos.
Claro que o preço de descer a inflação, medido por perda de empregos e redução da produção, será inferior se trabalhadores e capitalistas aceitarem a perda de poder de compra, em vez de a tentarem corrigir, gerando apenas mais inflação e levando os bancos centrais a aumentar ainda mais os juros.
Conseguirão os bancos centrais em geral e o BCE em particular ser bem-sucedidos com esta conversa de gestão de expectativas? É um caminho com riscos por colocar em confronto trabalhadores e donos de empresas, num tempo minado pelas mais diversas radicalizações. Mas se conseguir moderar a subida dos preços todos ficaremos a ganhar.