No meio de tantas alianças inesperadas, há uma de que quase ninguém fala: a aliança entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa. Entre as várias pequenas “revoluções” que ocorreram no mês que passou desde as eleições, o comportamento de Costa demonstrou um ponto de particular interesse: a política como a arte do poder. É essa a análise que me interessa fazer aqui, deixando para um plano secundário questões de moralidade, de legitimidade ou de justiça política, e mesmo considerações ideológicas. Aliás, o disfarce da pura política de poder em argumentos ideológicos constitui um dos pontos mais interessantes do que estamos a assistir.
Vamos então olhar para a política essencialmente como uma luta pelo poder, onde outros factores são secundários ou acessórios. E comecemos com António Costa, um dos mais puros e talentosos seguidores de Maquiavel (para os estudiosos do pensamento político, sei que estou a cometer uma enorme injustiça em relação ao mestre florentino, mas é o preço de escrever uma crónica desta natureza). Na semana que antecedeu as eleições, o líder do PS percebeu três coisas: iria perdê-las, não queria abandonar a liderança do PS, e para não o fazer teria que chegar a PM. Sabia que o facto de não se poderem realizar eleições antecipadas jogaria a seu favor. Bastaria que a coligação do PSD e do CDS não conquistasse uma maioria absoluta. Assim aconteceu, e essa foi a grande vitória de Costa no dia 4 de Outubro. É raro, mas às vezes acontece. A fortuna sorriu ao derrotado.
Temos que reconhecer que Costa exibe um grande talento no jogo da política como poder, e está a transformar a derrota numa vitória. Obviamente, ele não pode assumir perante os portugueses que o seu objectivo é o poder. A democracia exige certas cerimónias. Por isso, usa dois argumentos. Em primeiro lugar, a capacidade para formar uma maioria parlamentar, ao contrário de Passos Coelho (o que é natural porque o PSD e o CDS precisavam dele para essa maioria). Em segundo lugar, o argumento ideológico. Costa diz-nos que estará a construir uma aproximação ideológica das várias esquerdas, até hoje inimigas. Mas isto são apenas argumentos para respeitar as cerimónias da democracia.
Em rigor, Costa não formou uma maioria a três. Formou duas minorias (ambas mais pequenas do que a do PSD-CDS), beneficiando apenas do facto de existir uma “maioria negativa” que quer derrubar o governo. Costa conseguiu formar duas minorias à sua esquerda, mas não foi capaz de forçar um entendimento entre o PCP e o BE. Os inimigos íntimos bolcheviques continuarão bolcheviques e inimigos íntimos, mesmo apoiando um governo minoritário do PS. Se Costa se tornar PM, teremos um pequeno governo minoritário socialista, assente em duas coligações parlamentares minoritárias, uma com o BE e a outra com o PCP. Estas três minorias somadas resultam numa “maioria negativa”. No entanto, ao contrário do que diz Costa (e outros), não se alarga o arco da governação: o PCP e o BE continuam fora do governo. Apenas se esticou o arco do parlamentarismo.
O facto do PCP e do BE não irem para o governo também mostra que na verdade não houve qualquer convergência ideológica entre as esquerdas. Aliás, Costa foi muito claro na entrevista que deu na SIC. O programa de um governo do PS será o programa eleitoral socialista, com uns pequenos ajustes para comprar os votos parlamentares do PCP e do BE. De resto, os bolcheviques estalinistas e os bolcheviques leninistas não se ralam neste momento com questões programáticas (o programa deles é tirar Portugal do Euro e acabar com a democracia pluralista em Portugal), apenas querem que o PS lhes passe um atestado de bom comportamento, para continuarem a esconder a sua natureza radical e revolucionária.
Como grande jogador da política como poder, Costa percebe que o seu governo minoritário será muito frágil e instável. Entende melhor do que ninguém que a derrota eleitoral afectará a sua legitimidade política. Ao contrário do que diz, Costa não quer acordos para 4 anos. Precisa de eleições antecipadas. Costa sabe que nunca será um PM forte se não ganhar umas eleições. Cada vez que se confrontar no Parlamento com Passos Coelho, está a enfrentar o homem que o derrotou. Um político de poder não consegue viver muito tempo com uma derrota. Mas terá que ser ele a escolher, como PM, o momento das eleições antecipadas. Desconfio que o plano do “Princípe” socialista, para continuar no poder, será medidas populistas – tal como fez Sócrates em 2009 – e eleições antecipadas lá para Outubro do próximo ano.
Costa também não tem qualquer ilusão sobre as fidelidades políticas do PCP e do BE. Neste momento, está a usar os comunistas e os bloquistas para chegar ao poder, mas terá que os abandonar rapidamente. Quando os abandonar, provocando eleições antecipadas, vai acusá-los de todos o tipos de radicalismos ideológicos e irresponsabilidades políticas. As tréguas entre as esquerdas vão durar cerca de um ano. Depois, quando o PS não precisar deles, deixarão de novo o “arco da governação”.
A estratégia de Costa exige um aliado em Belém. Um aliado que o queira manter em São Bento e que também queira derrotar Passos Coelho. Esse aliado chama-se Marcelo Rebelo de Sousa, para quem a política também é um jogo de poder e, mais do que Costa, de rivalidades pessoais. Se Marcelo for eleito Presidente, tornar-se-á um dos “chefes” da “direita” e não sossegará enquanto não derrotar o outro “chefe” da direita, Passos Coelho, tentando tudo para o afastar da liderança do PSD. Deixará assim Costa escolher o melhor momento para derrotar o PSD em eleições antecipadas. Assumindo que Passos não é como Costa e se demite se for derrotado numas eleições, em nome do interesse nacional e de evitar um possível segundo resgate (mais provável após as medidas populistas do primeiro governo Costa), o próximo líder do PSD será pressionado pelo Presidente Rebelo de Sousa para fazer uma grande coligação com Costa a PM. Rebelo de Sousa ajudará assim Costa a conseguir o seu grande objectivo: acabar com a coligação PSD-CDS e liderar um governo de bloco central. O PCP e o BE são apenas os instrumentos agora disponíveis para aí chegar. Pelo caminho, Marcelo contará com o apoio de Costa para garantir a reeleição para Belém com relativa facilidade.
Há dois factores que poderão derrotar a estratégia de poder de Costa. Um, externo, será a evolução da política europeia (tema a tratar na próxima semana). Os outros factores são de natureza interna. Cavaco Silva tem poder e legitimidade para travar a estratégia de Costa e condicionar o próximo Presidente a dissolver a Assembleia e convocar eleições antecipadas. Se o fizer, estará, tal como Costa, a usar a flexibilidade das regras constitucionais para prosseguir os seus objectivos políticos. Mas com uma diferença a seu favor. Goza da legitimidade de um político eleito duas vezes por mais de metade dos votos dos portugueses; legitimidade que Costa certamente não possui.
Por fim, Passos e Portas, após o dia 10, vão regressar à política de combate. A primeira decisão que devem tomar é apresentar um candidato a Belém. Depois de tudo o que aconteceu nos últimos quarto anos e no ultimo mês, Passos e Portas não podem ter falta de comparência nas eleições presidenciais. Neste momento, Costa tem candidato (Marcelo), o resto do PS tem candidato (Maria de Belém), o BE e o PCP têm candidatos. Passos e Portas são os únicos sem candidato. Seria tolerável, se estivessem no governo. Na oposição, será inaceitável.