Estimados leitores.

Nas minhas “crónicas de verão” deste ano, há História, histórias e estórias, representações deste país e seus habitantes. Estórias de Portugal: no passado que fomos, o país que somos.

Viajando na máquina do tempo, desta vez rumo ao passado mais ou menos remoto, encontro pessoas e factos que, surpreendentes, banais, ou nem uma coisa nem outra, epitomizam os nossos erros e sucessos, fraquezas e forças. Na primeira crónica desta série falei de um homem (quase) desconhecido que representou Portugal numa inédita embaixada e foi por Portugal abandonado, morrendo anónimo do outro lado do Mundo. Hoje por aqui passam reis e rainhas, vidas por vezes tão ignoradas como a dos comuns mortais (que eles também são).

São estórias actuais. Veja-se o crónico atraso de desenvolvimento do país e as ocasionais promessas de milagrosas fontes de rendimento. Petróleo no Algarve? Pois.

A segunda (em duas partes) de seis estórias da História de Portugal: Ouro!

1ª parte: Caim e Abel. Esaú e Jacob. Jorge e Eduardo de Inglaterra. Pedro e Fernando Collor de Melo. Reis e rainhas, rivalidades entre irmãos que enchem páginas de romances e jornais. E o que sabem os portugueses de um dos maiores ódios fraternais, o de Pedro por Afonso?

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Dom João IV morre em 1656. Rege a mulher, Luísa de Gusmão e é herdeiro jurado Afonso, após a morte precoce do brilhante primogénito, Teodósio (o nome teria colorido a toponímia nacional). Removida a mãe da regência em 1662, Afonso VI reina até ser deposto em 1668.

Afonso não é propriamente dotado. Com um atraso mental, limitações físicas, acusações de homossexualidade, o seu reinado afoga-se em revoluções palacianas e golpes de teatro. Deposto, desterrado, preso, Afonso sobrevive entre as sombras de António Conti, a sua paixão, a conturbada memória da mãe, que depusera e o ajudou a depor, e o ódio ao irmão, usurpador do trono e de mulher. À bela Maria Francisca de Sabóia, Mademoiselle d’Aumale, sobrinha de Luís XIV, a quem não oferecera amor físico ou sequer espiritual e de quem se descasara por anulação do matrimónio, decretado inconsumado num processo público ainda hoje controverso, não vota rancor, pois nunca teve por ela sentimentos de afecto; mas Pedro, o seu brilhante irmão, filho de João e Luísa como ele … como ele o traiu.

Deposto, Afonso permanece 5 anos desterrado em Angra, donde é mandado regressar quando se esboça uma conspiração para o restaurar no trono. Seguem-se 9 anos de prisão, a estiolar no Paço de Sintra. Na corte, em Lisboa, reina como regente Dom Pedro, casado com a mulher (que não foi) do irmão. Colérico, desesperado, Afonso vive dilacerado, a reviver interiormente o romance da sua vida. Uma história mal contada?

Camilo conta-a à sua maneira, baseando-se em escritos da época: como se Afonso, pela enfermidade, fosse incapaz de odiar; como se a principal preocupação de Pedro fosse o bem-estar do irmão; como se o poder fosse estranho ao sucedido; como se o rei sem reino e o marido sem mulher (do prefácio de Camilo à “vida de el-rei dom afonso VI”, crónica anónima de 1684) tivesse perdido ambos por obra e graça do espírito santo e não de gente concreta, amigos, irmãos, mães. Juízo, apesar das limitações, tinha o rei mais do que os cronistas coevos fizeram crer. Compraz-se o cronista anónimo por “na última hora e na maior necessidade (Deus lhe ter dado meios) para pedir perdão de seus pecados, e misericórdia, e ultimamente acabar sua vida com as últimas palavras de absolvição”.

Mas o que não ouviram nem o criado de D. Pedro, António Rebello de Fonseca, que acompanhava o rei, nem ninguém; o que não soube Camilo, Oliveira Martins, Saraiva, ou o cronista de 1684, o que não soube ninguém porque ninguém o pôde escutar salvo o confessor em Sintra, à beira da cama do real moribundo, foram as palavras, sem cessar repetidas, odeio-o odeio-o odeio-o. Resta imaginar quem, em tão cadenciada forma, nos momentos derradeiros, execrava o rei sem reino, o marido sem mulher, o homem sem perfil de inteiro. Consolação, em todo o caso, é sabê-lo absolvido dos pecados e insuficiências pela posteridade.

Cognominaram-no “o Vitorioso”. Quem disse que a História de Portugal é aborrecida?

2ª parte: Finais do século 17; recuperada a independência, vencida uma guerra da restauração longa e exigente em homens e cabedais, Portugal afunda-se na bancarrota. Pobre, cada vez mais pobre país, de que forma se reerguerá e brilhará de novo a nação dos portugueses, cercada por Espanha e pelo oceano?

D. Pedro, príncipe-regente em 68, depara com uma economia destruída e um país arruinado, após 60 anos de ocupação descuidada e 28 de guerra intermitente mas feroz. O comércio de especiarias há muito dá prejuízo e a indústria açucareira brasileira decai com a prosperidade dos engenhos holandeses, franceses, ingleses. O regente rodeia-se de gente de qualidade e inicia reformas: tenta criar indústrias fabris, desenvolve a do vinho, reforma a agricultura, o comércio, insiste nas Américas, mandando incrementar as incursões dos bandeirantes paulistas nos sertões a oeste, e em África, algo mais do que um alforje de escravos. Debalde.

Finalmente rei em 1683, D. Pedro II, o Pacífico perde a mulher que (não) foi de Afonso, Maria Francisca, nesse mesmo ano. Infeliz entronização: viúvo, no horizonte a bancarrota e a ruína, com a independência de novo por um fio. O rei volta a casar, com a princesa bávara Maria Sofia de Neuburgo, que será mãe de D. João V. E persevera: reformas económicas, criação de um tecido industrial, ousadia comercial… em 1697, envia ao governador do Brasil, Arthur de Sá, uma carta régia concedendo um reforço financeiro para incentivar a busca de ouro e pedras preciosas…

Até que…

A história não regista o dia, nem o modo. Muitos acham que não houve um dia e um modo, mas muitos dias e muitos modos. Estão enganados. Foi por uma tarde soalheira, estava o rei com Maria Sofia no Paço a jogar uma partida de dados, quando um conselheiro real entrou sem se fazer anunciar, em violação de todas as regras da etiqueta da corte lisboeta. Arriscava-se a ser admoestado, no mínimo; mas a notícia que trazia resgatou-o de todas as culpas:

“Ouro, Majestade, ouro”. Dom Pedro não se mexeu e foi Maria Sofia, com o sotaque arrastado de natural da Baviera, que perguntou ao mensageiro de que ouro falava. Disse este: “vinte ribeiros de ouro da melhor qualidade no Taubaté, Majestade”, ao que o rei finalmente se ergueu e com grandes manifestações de júbilo mandou vir infusões e generosos, a saudar a nova riqueza anunciada.

E foi assim: minas de ouro e de brilhantes, cujo quinto de mineração pertencia por tributo ao tesouro real; logo na primeira remessa, em 1699, a coroa recebeu sete milhões de cruzados em brilhantes vendidos em Amesterdão, para além de mais 11 mil quilos de ouro amoedado.

Um país rico, reformas interrompidas. Até à desdita seguinte, à distância de um reinado…