Esta sexta-feira uma pequena notícia tornou-se uma das mais lidas do Observador. Dava ela conta que dois médicos e uma professora de direito tinham publicado, numa prestigiada revista científica dos Estados Unidos – a New England Journal of Medicine – um texto de opinião onde se defendia que as certidões de nascimento não devem incluir sexo do bebé porque tal pode ofender as pessoas transgénero. Um dos argumentos é que essa referência não oferece qualquer vantagem clínica, e é provavelmente o único argumento com que concordarei no texto – de facto não estou a ver nenhum pediatra a pedir para ver a certidão de nascimento para saber de que sexo é um bebé, pois mais depressa espreitará para dentro da fralda.
Mas a chegada de artigos como este não apenas a revistas científicas da área das ciências sociais – onde há décadas se financiam os “estudos de género” e se elaboram as mais desvairadas teorias –, mas também a publicações médicas começa a ser inquietante. Até porque entre os argumentos do texto se desenvolve a ideia de que, biologicamente, a definição do sexo é algo extremamente complexo e não binário.
Vamos lá ver se nos entendemos. O facto de existirem, segundo os autores, 1 em 5000 pessoas com variações intersexo apenas nos coloca perante excepções que fazem parte da natureza das coisas. Para ser mais exacto, perante excepções que fazem parte da própria natureza da reprodução sexuada.
E aqui chegamos a um ponto importante, a um ponto que coloca estes novos apóstolos no mesmo terreno daqueles que há mais quatro séculos negavam que a Terra girasse em torno da Lua: eles querem que a Natureza, neste caso a Biologia, vá de encontro ao seu preconceito social e ideológico, e por isso não querem aceitar que existam leis que regem o mundo natural. Isto porque para eles tudo é uma “construção social” – incluindo saber se somos homem ou mulher.
Como sabemos este debate começou como a distinção entre “sexo” e “género”. Dou-a (por hoje) de barato. O sexo é determinado pela nossa biologia, o género pelas nossas preferências sexuais. Desde que falemos de adultos e se de actos consentidos, nada a opor às preferências sexuais.
Tudo se complica, e muito, quando deixamos de falar de adultos, e suspeito que é por isso, e por causa dos debates em torno dos transgéneros, que de repente também se começou a pôr em causa a natureza binária da própria biologia.
Acontece porém que a existência de dois sexos é a essência da reprodução sexuada, e isso é válido tanto para nós, seres humanos, como para a generalidade dos seres vivos mais complexos e evoluídos, o que inclui a maior parte das plantas – sim, das plantas, como sabe qualquer criança a quem ensinaram a importância das abelhas na polinização das flores.
Mais: a reprodução sexuada é porventura menos eficiente para assegurar a rápida reprodução de uma espécie (basta pensar no nosso conhecido SARS-CoV-2, que não chega bem a ser um ser vivo, e não se reproduz por reprodução sexuada), mas milhares de milhões de anos de evolução das espécies indicam-nos que ela permite o grau de variabilidade de geração para geração que não só assegura a sobrevivência quando ocorrem grandes alterações ambientais, como o aparecimento de seres cada vez mais complexos. É também a reprodução sexuada que garante que todas as gerações são diferentes das gerações precedentes, pois houve mistura dos genes entre machos e fêmeas e não apenas uma acção aleatória de mutações.
Como também sabemos, neste processo de cópia de genes ocorrem por vezes erros, mesmo com os cromossomas X e Y que determinam o sexo, e por isso é possível identificar muitas anomalias, a maior parte delas minúsculas e virtualmente indetectáveis, em homens que sempre foram homens e em mulheres que sempre foram mulheres. Citar, como fazem os autores, estudos onde se referem casos onde, por exemplo, uma mulher ao fazer exames para ter o ser terceiro filho, aos 46 anos, percebeu que uma parte das células do seu corpo tinham cromossomas XY em vez de terem cromossomas XX como se esperaria, apenas mostra que a Natureza às vezes se engana, mas nada muda em relação ao mais importante: a nossa espécie, para sobreviver, precisa de continuar a ter homens e mulheres, pois precisa de continuar a viver e a reproduzir-se sexuadamente. Tão simples como isso, a não ser que queiramos passar ao pesadelos distópicos em que tudo é gerado em provetas.
Mais: como sucede com as outras espécies, e com os primatas em particular, as diferenças entre homem e mulher não se limitam a terem uma genitália diferente. Ou a produzirem hormonas distintas. É um mito, e um mito perigoso para as mulheres, a ideia de que todas as diferenças que existem resultam apenas de uma “construção social” e que, por isso, tudo se resolve com quotas e leis. Uma coisa é resolver o que são desigualdades reais – as desigualdades salariais, por exemplo –, outra bem diferente é pretender que as mulheres em circunstâncias idênticas façam as mesmas opções dos homens, ou os homens as mesmas opções das mulheres, sobretudo se pretendermos que isso seja imposto administrativamente.
Ora quando chegamos às certidões de nascimento, ou quando chegamos – como chegámos no Canadá, por exemplo – a normas de tratamento de têm de ser, como lá se designa, “gender neutral”, então começamos a chegar a um ponto em que pretendemos que as meninas deixem de ser meninas e os meninos deixem de ser meninos. Atenção: não falo de vestir uns de cor-de-rosa e outros de azul, de inscrever necessariamente os rapazes no clube de futebol e as raparigas nas de ballet. Esses estereótipos pertencem a outras gerações.
Agora aquilo que estes novos activistas pretendem são estereótipos de sinal contrário, é um desconstrutivismo social e cultural que deixe os nossos filhos sem quaisquer referências, pois no fundo acreditam no mito do “bom selvagem” de Rousseau. E acreditam nesse mito porque detestam tudo o que tem a ver com o nosso mundo e a nossa civilização.
Ora aquilo que temos de ter bem presente é que a nossa biologia, a que vem codificado nos genes do Homo sapiens – e nós ainda nascemos com genes, convém não esquecer –, é uma biologia sobre a qual a selecção natural nunca deixou de actuar ao longo dos milénios e que nos dotou de virtudes e defeitos que só por via de estritas regras sociais nos permitem viver em paz e em sociedades progressivas. Ou seja, se alguma “construção social” fomos erguendo em cima da nossa biologia, foi para fazer de nós melhores seres humanos. Mas nunca deixámos de ser Homo sapiens, homens e mulheres, mesmo com umas trocas pelo meio.
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