1Apenas 24 horas depois de José Sócrates ter perdido a maioria absoluta nas legislativas de 27 de setembro de 2009, Domingos Paiva Nunes (então administrador da EDP Imobiliária) e o sucateiro Manuel Godinho (líder do grupo O2) usaram os seus dotes de analistas políticos para concluírem que o poder do PS estava a tocar a finados e a Sócrates não restava muito mais tempo no poder. No meio do debate sobre diversos esquemas que poderiam ser implementados entre dois homens que vieram a ser condenados por corrupção, o então gestor da EDP foi sincero com o sucateiro: “Deixem-se de tretas porque a gente não tem muito tempo para ganhar dinheiro”.

Como a chico-espertice e a corrupção não escolhem nem ideologia nem cor política, foi desta história que me recordei quando li o parecer do Tribunal de Contas que censura fortemente a extraordinária alteração ao Código dos Contratos Públicos que o Governo de António Costa quer levar avante, pois a mesma promove a “limitação do mercado, a distorção da concorrência e riscos acrescidos de conluio e corrupção. Bem se pode argumentar que o atual Executivo socialista ainda não tem um fim à vista, como Sócrates tinha em 2010, mas lá que os sinais de desgaste começam a surgir (sendo esta proposta de alteração legislativa apenas mais um exemplo), disso não há dúvidas.

E o que quer o Executivo socialista fazer? Expliquemos os ponto essenciais:

  • Governo quer alterar um procedimento regra do Código dos Contratos Públicos, segundo o qual mesmo em caso de invocação de urgência ou de outros critérios para se proceder a um ajuste direto, deve ser feita uma consulta prévia a três entidades. A proposta de lei muda essa regra e permite a consulta de apenas uma entidade. O Tribunal de Contas (TdC) diz que esta opção representa “um retrocesso na proteção dos interesses financeiros do Estado” por diminuir a concorrência (que faz baixar o preço a pagar pelo Estado) e “representa um risco acrescido” em “ilícitos de corrupção e infrações conexas”.
  • Ou seja, será possível em procedimentos de contratação de obras públicas passar a convidar apenas uma entidade ou recorrer à consulta prévia de vários concorrentes até a um valor de 5,3 milhões de euros. Dispensando-se o concurso público que garante mais transparência e livre concorrência.
  • A lei ainda em vigor impõe limites aos convites às mesmas entidades para promover a concorrência e impedir conluios. Pois bem, o Governo quer extinguir tal limitação com recurso a critérios geográficos e desde que se tratem de pessoas singulares, micro, pequena ou média empresa. Resultado? Uma autarquia vai passar a escolher empresas com sede nos respetivos concelhos — e vai passar a a poder adjudicar-lhe ad eternum os mesmos contratos. Estas alterações são “suscetíveis de contribuir para o crescimento de práticas Ilícitas de conluio, cartelização e até mesmo de corrupção”, lê-se no parecer do TdC.
  • Passa a ser possível à entidade pública dispensar o conceito conceção/construção. Isto é, os empreiteiros serão responsáveis pelo projeto e pela obra, terminando assim a separação entre a conceção (a cargo de arquitetos ou engenheiros) e a execução. Na prática, as construtores passam a determinar todo o processo. “Aumenta as possibilidades de conluio na contratação pública e distorção da concorrência”, diz o TdC.
  • E será ainda possível desrespeitar o preço base do processo de contratação pública. Ou seja, no caso em que todas as propostas de um concurso público tenham sido excluídas, passa a ser possível adjudicar até a um limite de 20% acima do preço base.

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Qual é a gravidade de tudo isto? O Governo não esconde que o seu objetivo é flexibilizar as regras para acelerar a execução dos mais de 45 mil milhões de euros de fundos europeus que Portugal vai receber até 2030. Isto é, a ideia é gastar depressa e bem para não ter que devolver a Bruxelas nem um cêntimo. Mesmo que seja necessário, como parece que é, retroceder em termos de transparência e de livre concorrência.

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Dá a ideia de que o Governo de António Costa quer repetir o desperdício, a opacidade e o enriquecimento ilícito fácil que se verificou com a distribuição dos mais de 96,1 mil milhões que foram distribuídos entre 1989 e 2013.

Refira-se, aliás, que o parecer o Tribunal de Contas esteve envolto em misteriosas trapalhadas da Assembleia da República liderada pelo socialista Ferro Rodrigues. Apesar da iniciativa legislativa do Governo ter dado entrada no Parlamento no dia 26 de junho de 2020, o Tribunal de Contas só foi interpelado às “15h29 do dia 17 de setembro de 2020” — ou seja, quase três meses depois da proposta de lei ter entrado nos serviços parlamentares — para emitir o seu “parecer escrito com caráter de urgência até ao dia 28 de setembro de 2020”.

Diga-se de passagem que, além do Tribunal de Contas, também as ordens dos Arquitetos e dos Engenheiros já alertaram para os riscos destas alterações. Com a agravante de vários juristas já terem igualmente constatado que Portugal pode arriscar uma ação da Comissão Europeia por incumprimento dos princípios basilares do mercado único, como sejam a livre concorrência e a igualdade de oportunidades.

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Como se isto não bastasse, ficou-se a saber que o Governo quer afastar o juiz conselheiro Vítor Caldeira da presidência do Tribunal de Contas. Confesso que não fico surpreendido. Não porque Caldeira mereça ser afastado — pelo contrário — mas sim porque tal afastamento era inevitável.

Vítor Caldeira é um homem incómodo, em primeiro lugar, para o Governo mas também para o PS. Entre outros choques nos últimos anos com o Governo e com o PS, basta recordar o momento em que Fernando Medina apelidou um relatório do Tribunal de Contas (TdC) como “tecnicamente incompetente”, de “baixíssima qualidade”, “falso” e “lamentável” e acusou os conselheiros de fazerem “política, não tendo sido eleitos para isso”. Um cavaquista dos anos 90 não diria melhor sobre o Tribunal de Contas liderado por Sousa Franco.

Ou aquela vez em que o ministro do Ensino Superior, Manuel Heitor, considerou um relatório dos TdC como um “elogio à burocracia e à intolerância” e um “um conjunto de banalidades” e de “especulações de âmbito político”. Ou ainda aquele momento em que o ministro Pedro Nuno Santos censurou outro documento sobre a segurança das infra-estruturas.

Outros exemplos poderiam ser dados mas a intolerância dos socialistas para quem lhes faz frente é óbvia. Por isso, António Costa afasta Vítor Caldeira do Tribunal de Contas, como antes tinha feito com Joana Marques Vidal na Procuradoria-Geral da República e tentou fazer com o governador Carlos Costa. Só neste último caso não teve sucesso porque tinha de enfrentar uma entidade europeia como é o Banco Central Europeu.

4 Acrescente-se, aliás, que é irrelevante o argumento do Governo de que os titulares da Procuradoria-Geral de República e do TdC só devem fazer um mandato. Uma vez mais, e tal como aconteceu no caso de Joana Marques Vidal, não só tal disposição não existe na lei, como diversos antecessores de Caldeira já fizeram vários mandatos consecutivos. Foi o caso de António Sousa Franco (que esteve no TdC entre 1986 e 1995 e saiu para ser nomeado ministro das Finanças de António Guterres) e de Guilherme Oliveira Martins (líder do TdC entre 2005 e 2015 depois de ter sido ministro de Guterres em diversas pastas) desempenharem vários mandatos consecutivos à frente do TdC.

Aliás, quase que aposto que o perfil desejado por António Costa para o próximo líder do Tribunal de Contas seja muito semelhante ao de Oliveira Martins. Ao contrário do mandato de Vítor Caldeira, a liderança de Oliveira Martins no TdC serviu para controlar a secção de auditoria então liderada pelo juiz conselheiro Carlos Moreno e reduzir ao mínimo possível o incómodo que o tribunal poderia provocar a José Sócrates. Já para não falar nas negociações diretas que o próprio Oliveira Martins liderou em 2009/2010 com os inefáveis Mário Lino e Paulo Campos para contornar o chumbo dos conselheiros do TdC aos vergonhosos contratos das Parcerias Público-Privadas (PPP) rodoviárias (ver ponto 3 deste Especial do Observador sobre o tema)

Veremos se Marcelo Rebelo de Sousa aprendeu com o o erro que cometeu com Joana Marques Vidal e passará a escrutinar com muito mais atenção o nome do sucessor de Caldeira que lhe será proposto por António Costa. É que, tal como aconteceu com o cargo de procurador-geral da República, o Presidente da República tem o poder de nomear o presidente do TdC sob proposta do Governo. Será que desta vez exercerá o seu poder efetivo ou vai deixar que António Costa tudo controle a seu belo prazer para deleite do PS?

Texto alterado às 11h54 com o acrescento de um parágrafo relacionado com a intervenção de Guilherme Oliveira Martins nas negociações com o Governo Sócrates sobre o chumbo do Tribunal de Contas em 2009 aos contratos das PPP rodoviárias.