Um dos padrões mais perigosos na história mundial é o das grandes guerras de transição de poder. Os maiores conflitos armados resultaram desta forte tendência para o choque de interesses entre grandes potências tradicionalmente dominantes e grande potências emergentes. A Primeira e a Segunda Guerra Mundial são exemplos disso e não por acaso foram os conflitos mais sangrentos de sempre, somando mais de 70 milhões de mortos. Isso foi resultado do progresso – foram grandes guerras industriais – mas também da mobilização de todos os recursos das grandes potências em confronto. Hoje teme-se que o padrão se repita entre os EUA e a China. E a disputa em torno da ilha de Taiwan pode ser o detonador desta explosão.

Perigos de uma história demasiado interessante

Taiwan tem sido protegida de uma invasão comunista chinesa desde 1949 pelo poder aeronaval dos EUA, num compromisso formalizado no Taiwan Act de 1979. Em 1949 a mais recente guerra civil chinesa terminou com a vitória do Partido Comunista no continente e a proclamação da República Popular da China, em Pequim, por Mao Zedong. Porém, o governo rival do Partido Nacionalista liderado por Chiang Kai-shek refugiou-se no santuário insular que é Taiwan. É por isso que o Estado que hoje governa a ilha tem como nome oficial República da China. É irónico que o governo rival da República Popular da China insista que continue a ser assim, ameaçando que se vier a existir uma declaração formal da independência da ilha isso é que levaria à guerra.

Também é interessante saber que esta ilha tão bonita foi, por isso mesmo, batizada de Formosa pelos navegadores portugueses que lá chegaram no século XVI. Isto mais de um século antes da conquista e anexação chinesa, a partir de 1683. Não menos interessante é que o início da ocupação da ilha pelo Estado chinês date apenas do final do século XVII e que a população nativa de Taiwan, hoje minoritária, tenha resistido intermitentemente até ao século XIX. É mesmo questionável que a China controlasse totalmente a ilha quando foi forçada a cedê-la ao Japão, em 1895. Ela só voltou ao controlo de um governo da China continental no final da Segunda Guerra Mundial.

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No último século, portanto, Taiwan só foi governado a partir da China continental durante quatro anos, de 1945-49. Isso não impede que se tenha tornado na peça central em falta no grande desígnio de completar a reunificação do país do cada vez mais nacionalista Partido Comunista Chinês,. Ter sido durante décadas a sede de um governo rival, ser hoje uma democracia pluralista, bem como uma economia dinâmica que controla setores chaves de alta tecnologia ajuda a explicar a determinação de Pequim em controlar a ilha.

Um último paradoxo desta história é que os EUA não apoiam a independência de Taiwan, mas insistem que qualquer reunificação terá de ser negociada, pacífica. Aliás os EUA foram, nos últimos dois séculos, a única grande potência que sempre aderiu à política de uma só China, e que recusou participar na anexação de território chinês. Ao contrário, por exemplo, da Rússia, que ainda hoje ocupa vastos territórios chineses até 1860, por exemplo toda a região de Vladivostoque.

Boas e más notícias de Xi

É por tudo isto que o discurso de quase duas horas de Xi Jinping, no poder desde 2012, no recente XX Congresso do Partido-Estado comunista chinês, foi cuidadosamente analisado para se identificarem possíveis pistas sobre se iríamos assistir no curto prazo a uma invasão chinesa de Taiwan.

A boa notícia é que Xi usou a mesma linguagem que Pequim tem usado nas últimas décadas. Ou seja, confiança numa reunificação pacífica, não afastando uma intervenção militar se houver declaração de independência unilateral ou presença na ilha de tropas estrangeiras. Não haver novidade neste caso é a notícia. Havia o temor de que Xi poderia apontar para a reunificação num prazo fixo e próximo.

Qual é, então, o problema? Desde logo, sem tropas norte-americanas na ilha, uma invasão será mais difícil de dissuadir e derrotar. Depois, podemos fiar-nos nestas declarações? A China durante décadas disse que não queria ter bases no exterior. Mas desde 2017 que tem um importante base no Djibouti. Pequim prometeu que não ia militarizar as ilhotas que controla no Mar do Sul da China. Mas fê-lo quando foi conveniente. Aliás, na cultura estratégica chinesa, de Sun Tsu em diante, valoriza-se especialmente os estratagemas que iludem o adversário. E este tipo de postura também corresponde ao padrão típico de uma grande potência em ascensão, que começa por criticar os excessos das grandes potências dominantes, até ter força para também os praticar.

Há três dados preocupantes a considerar deste ponto de vista. O primeiro é que o crescimento económico chinês está em forte queda, por razões estruturais, internas e externas. Ora, a par do nacionalismo, esse tem sido o grande elemento de legitimação deste regime de Leninismo de mercado. Faltando crescimento económico, sobra a Xi o reforço da repressão e da cartada nacionalista. E nada melhor do que poder ser ele a terminar de reunificar o país. O segundo é o forte investimento na modernização das Forças Armadas chinesas. Todos os anos o Partido-Estado a China tem aumentado significativamente o seu gasto em defesa, apostando numa série de novas capacidades que seriam importantes para um ataque anfíbio ou um bloqueio a Taiwan. Desde 2015 também foi iniciada uma reforma significativa das Forças Armadas, visando o reforço do comando conjunto. Esta é uma tendência global, mas também seria indispensável para levar a cabo uma operação anfíbia. O terceiro é a crescente concentração de poder em Xi que este XX Congresso consagrou. Foi assim em termos formais com uma mudança na constituição do partido. Foi assim em termos teatrais com a humilhação pública do anterior líder Hu Jintao. E foi assim também em termos da nova liderança, constituída no essencial por colaboradores próximos de Xi, seja ao nível da Comissão Permanente de sete homens que governam a China, ou da Comissão Militar Central que comanda as Forças Armadas.

Claramente os chefes militares norte-americanos com a responsabilidade de ajudar Taiwan a responder a um eventual ataque estão preocupados, e nós também devemos estar. Sem Taiwan ficaríamos sem boa parte dos semicondutores mais avançados que são o cérebro da nossa economia da informação. O caos económico global se se avançasse com sanções amplas contra a China seria muitíssimo pior do que a atual guerra económica com a Rússia. Por outro lado, é certo que uma invasão de Taiwan seria uma operação militar de risco muito elevado. Mas há outras opções militares, como um bloqueio aeronaval. E um regime Neo-Maoista, cada vez mais nacionalista, teria poucos contrapesos relativamente a decisões imprudentes do novo Grande Timoneiro.

Um teste próximo será um possível encontro bilateral entre Biden e Xi na cimeira dos G20. Seria do interesse de ambos os lados, num Mundo tão instável e conflituoso, dar um sinal de melhoria pragmática nas relações. Veremos se o crescendo de nacionalismo identitário, também nestas duas grandes potências, dará algum espaço para isso.