Quando o Governador do Banco de Portugal (BdP) proclama que “o BES está seguro”, o natural é acorrer-nos uma dúvida ao espírito. Antes de o governador ter falado nisso, a ideia nunca nos tinha passado pela cabeça. Quando alguém do Governo vem reafirmar a mesma coisa, nós voltamos a duvidar. Por outras palavras, o mau é termos chegado ao ponto de ser preciso as autoridades terem de nos dizer isso. Quando o secretário-geral do PS acrescenta que “os fundos públicos não devem ser usados para cobrir falhas dos privados”, só pode fazer-nos pensar no que temos pago pela falência do BPN com o argumento de Sócrates de que “o risco era sistémico”. E agora não é? Basta ver o que sucedeu nas bolsas e nos jornais económicos internacionais na semana passada. Interrogo-me ao fechar este artigo no domingo à noite com medo do que acontecerá segunda-feira quando a bolsa abrir.
O risco é um novo resgate. Só um irresponsável das oposições ao actual Governo é que não está seriamente apreensivo. Para as oposições, a palavra de ordem é: quanto pior, melhor! Ora, se algo mostra que o mal vem de longe, tal como a notória incapacidade de crescer economicamente que o país tem demonstrado desde o início do século XXI, foi o alastramento imediato dos alegados problemas do “grupo BES” à Portugal Telecom, cujo presidente-executivo terá feito nada mais, nada menos, do que um recente empréstimo aparentemente incobrável de perto de mil milhões de euros ao “grupo BES”…
Não era a PT uma das jóias da coroa desse novo sistema económico que sucedera às desnacionalizações? O senão é que essas empresas – a que chamo “majestáticas” em recordação das concessões económicas nas antigas colónias africanas – só passaram a ser privadas na medida em que permaneceram sob o olhar controlador do Estado e, ficamos agora a saber, do seu grande accionista, o “grupo BES”. Segundo a imprensa especializada, o controle sobre a PT por parte de Ricardo Salgado e do governo Sócrates (com a sua “golden share”) ter-se-ia apertado quando Belmiro de Azevedo – outro nome do novo capitalismo – lançou uma OPA sobre a empresa, como aliás já tentara pôr o pé na televisão mas o Estado não deixara…
Como se não bastasse aquilo que se passou nos bastidores do “grupo BES” até os escândalos saltarem para os cabeçalhos da imprensa internacional, com o seu efeito fatal sobre a “confiança dos mercados”, os acontecimentos presentes desdobram agora perante nós toda a impudência e todos os riscos associados a uma pequena economia onde coabitam, se interpenetram e se apoiam mutuamente os interesses privados mais egoístas e os interesses políticos mais descarados. Em suma, uma economia que nem é verdadeiramente privada nem exclusivamente estatal, pagando contudo os custos de ambas as coisas, desde os oligopólios económicos aos agrupamentos partidários, com o apoio tácito dos partidos da extrema-esquerda sob o pretexto da defesa do “estado social” e do “emprego para todos”. Numa palavra, a oligarquia inconfessada que tem presidido ao nosso regime.
Com os enormes custos que isto está a representar e que constituem uma realidade difícil de imaginar, o país tem estado apesar de tudo a mudar sob a pressão do ajustamento financeiro. Faço ao primeiro-ministro a justiça de acreditar que ele deseja ardentemente não ter de envolver o Estado mais do que já está neste caso sórdido do “grupo BES”, mas não é certo que o consiga. Oxalá que entre ele e o governador do BdP consigam prosseguir a mudança que, contra ventos e marés, se tem processado neste campo, introduzindo uma linha de demarcação minimamente clara entre o público e o privado.
Se é certo que os “cortes” no funcionalismo e nas pensões, assim como as limitadas privatizações efectuadas, o aumento da produção de bens transacionáveis e sobretudo das exportações, permitiram reduzir o peso do Estado na economia, é absolutamente necessário que este processo continue e se alargue não só no plano das contas nacionais, mas também no das relações espúrias e corruptoras que se têm mantido entre os interesses económicos e o pessoal político, desde as grandes empresas às encomendas estatais do género “Magalhães”.
Nesse sentido, ao mesmo tempo que se exige a máxima rapidez na instalação de novos dirigentes à frente do BES, a fim de limitar o enorme desgaste que o caso está a causar, é preciso escrutinar de forma exemplar que as distâncias entre o público e o privado serão rigorosamente respeitadas, o que ainda não se está a verificar plenamente, longe disso, apesar das exigências expressas pela opinião pública. À mulher de César não basta ser séria; tem de ser transparente. Ora, a permanência de pessoal político indicado pela própria família Salgado à frente do BES só pode prejudicar a imagem do banco e custar votos aos partidos que assim se deixarem envolver na teia. Restam poucos dias ao governador do BdP e ao próprio governo para garantir que haverá essa transparência. Se não, isso será contado contra eles na primeira ocasião e o país pagará por isso.