Quem se confina, autorizado ou não, desconfina-se. Parece ser difícil encontrar o verbo desconfinar. Desconfinados, o que nos espera ?

Nesta altura, o número de mortes banalizou-se: hoje parece que “só” morreram vinte e cinco – dir-nos-ão de forma corriqueira. Ora, coincidentemente, no dia seguinte ao do Trabalhador, estará concluído o segundo período do Estado de Emergência.  Ou seja, quem esteve em confinamento por iniciativa própria ou alheia irá, por fases, dizem-nos, voltar a sair da toca e voltar a circular e, eventualmente, a trabalhar nas instalações habituais.

Tenho escutado e lido, atentamente, as múltiplas intervenções desde a “esquerda à direita” até aos dos donos da bola, treinadores, jogadores, árbitros e, até, os adeptos de bancada.   Há estudos para tudo, tais como os que dizem ( ainda ) que a gripe mata mais, que o Medo é que nos está a matar, que foi um/de propósito chinês, que atinge mais umas raças do que outras, que o clima tem muita influência e que até vai ajudar a resolver, etc.

Como habitualmente, estas coisas, começam de mansinho.

Constatar que, apenas há dois meses e meio, mais precisamente em 15 de Fevereiro existiam, numa longínqua província chinesa (reportados…) cerca de 66 mil casos e, em todo o mundo, apenas 500… dá que pensar. Quando escrevo, acabámos de ultrapassar os 3 milhões de casos em todo o Mundo e estamos perto dos 300 mil mortos.

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Claro que devemos acreditar nos números que nos dão, mas como se dizia há já algum tempo, principalmente o número de mortes será, ao que parece, bem maior. Um estudo muito recente do Financial Times tornou bem claro, em 14 países da Europa, a disparidade do número de mortes, oficialmente divulgado, face à evidência do crescimento desmesurado, por explicar, de mortes em cada um dos Paises analisados.

Para os Europeus e para os seus amigos do denominado Eixo Atlântico, tudo o que tem a ver com estas coisas que se passam lá longe, tem pouca importância. Só que, estas coisas, quando chegam à dita Civilização Ocidental passam a ter uma importância determinante. É o caso. Entretanto, a China “deixou” de ter casos e o resto do Mundo está em pandemia e, ao que parece, para mais uns anos.

Tem-se falado muito da “Gripe Espanhola” que, ao que parece, terá surgido num campo militar americano no Kansas (embora se diz que trazida por trabalhadores chineses…) e espalhou-se por muitos países. Como estávamos no ano final da I Grande Guerra e ainda não havia agências de comunicação, os países, nomeadamente os do “lado dos Bons”, evitaram dar a notícia porque afectaria a moral das tropas e poderia incentivar o inimigo. Ora, a Espanha, que se mantinha neutra, e não tinha quaisquer condicionantes, informou o Mundo. Para tal, de castigo, deu o nome à Gripe. Durou de 1918 a 1920 e terá matado mais de 100 milhões. Mas esse vírus viajou de barco, a Covid-19 foi (e ainda é…) de avião

Vejamos a forma, com estas coisas, acontecem. Ao que parece, tudo começou na Europa com uma reunião de uma chinesa, infectada, com um alemão, que ficou infectado. Dando um salto até agora, dado que estas coisas estão na ordem do dia e todos nós temos opinião sobre elas, constatamos que existem três assuntos que dominam tudo : a curva, o pico e o planalto! É, de facto, uma novidade na análise d’estas coisas. Em casos anteriores, nunca o Mundo se debruçou tanto nestas análises.

Em Portugal, qualquer pessoa trata a curva exponencial por tu. Para o achatamento da mesma, temos imensas pessoas a fazer força. Para a análise do pico e, mais recentemente, do planalto, também temos muitos especialistas nos canais da TV, a analisarem a problemática. O problema destas coisas é que demonstram, como se constata, como sabemos muito pouco e somos vulneráveis, para além de andarmos a conviver e, até, a comer animais totalmente exóticos e selvagens com quem nunca tivemos contacto.

Mas, tendo dado este enquadramento sucinto, detenho-me no futuro! Passados cerca de 1000 mortos, temos, agora de nos concentrar noutro número: o dos vivos. Como vai ser a “nossa vida”, a partir de dia 3 de Maio de 2020? Como diria o Sérgio Godinho… “este é o primeiro dia do resto” das nossas vidas.

Julgo que pertencerei àquele conjunto de pessoas – básicas, certamente — que ainda não percebeu o que mudou. Nós, seres superiores do Universo, com vastos conhecimentos sobre muitas matérias e com certezas sobre quase tudo, em pleno Séc XXI, somos surpreendidos por uma destas coisas, que nem a conseguimos ver à vista desarmada? E qual foi a solução encontrada? Fecharmo-nos em casa!

Desculpem não alinhar na onda dominante. Ganhámos imunidade? Não. O SNS estará, dizem-nos, com maior capacidade de resposta. Será? Aqui entra o título deste texto:  desconfinados… e desconfiados? Claro!

M.T.  diz, em 29 de Abril, que não “crê” que o SNS seja suficiente no período pós-surto. Sabem quem é que disse? A ministra da Saúde! Como é que não deveremos estar, mesmo muito, desconfiados?

Ora, o que sempre esteve evidente é que o SNS já estava nos limites antes deste surto. Embora eu seja crente, como o Presidente, não acredito nos milagres em que ele acredita… ou quer acreditar. Os Portugueses, por vezes, é que me parece que querem acreditar em milagres destes, dos que surgem debaixo das pedras. Ora, alguém pôde acreditar que, para se fazer este esforço de atendimento, diagnóstico, acompanhamento e tratamento… as outras coisas não ficariam para trás?

Ao que nos dizem, 40% das cirurgias previstas para Março não se realizaram. Centenas de milhar de consultas, tratamentos e cirurgias que não tiveram lugar, dizem os entendidos, irão ser objecto de uma calendarização para a sua efectivação. Leram bem! O que vamos ter é, em paralelo, o que ficou por fazer, “em simultâneo” com a gestão corrente do surto.

Ora, se não houve até agora capacidade — apesar de toda a boa vontade e empenho dos envolvidos – para o fazer, qual é o milagre que se espera que torne possível o fazermos agora?

No dia a dia, temos andado desconfiados, apesar de confinados. Desconfiados do parceiro, da família, do funcionário do supermercado, do tecido e dos sapatos, da superfície, do computador e do telemóvel, dos phones, dos botões do Multibanco e dos elevadores e, até, das nossas próprias mãos.

A partir de agora, com mais gente nas ruas, nos transportes, nos empregos, nas lojas pequenas e cabeleireiros e, posteriormente, nos restaurantes e lojas de média dimensão, o perigo vai diminuir? E, se formos num transporte e uma das pessoas que não tem máscara… tossir? Não ficaremos desconfiados?

E, já agora, viram o que se passou em Singapura, sempre referida como um bom exemplo? Reabriu e viu-se confrontada com uma pandemia “concentrada” (88% dos casos novos, segundo o New York Times) na força laboral onde assenta o seu  modelo : o contingente de migrantes. É triste constatar que estes países — neste caso pequeno mas com grande pujança económica — assentam a sua economia num enorme exército de estrangeiros que vivem em condições, que agora se comprovam, não serem as melhores. São, afinal, os Gigantes de Pés de Vírus, tal como a emitente China. Subtilmente, já tivemos caso recente em Lisboa. E, não devemos desconfiar?

Aliás, nomeadamente na restauração, tão falada, muito do pessoal de cozinha é… do Nepal, Paquistão, Brasil, entre outros. Em muitos casos os pedidos à cozinha são feitos em Inglês. São bons trabalhadores mas vivem, parte deles, em condições que um dia saberemos.

Para além da Saúde, como vamos viver, no futuro – embora o passado muito recente nos faça desconfiar – no novo Ciclo Económico? A coisa já começou bem: as candidaturas às linhas do reabilitado lay-off — adaptado às circunstâncias — apenas foram aprovadas em pouco mais de 60%. Até a não indicação eventual do IBAN, dizem, serviu de justificação para a não aceitação e aprovação. E, não devemos desconfiar?

A afirmação de que as empresas receberiam até ao dia 28 de cada mês, a começar em Abril, a comparticipação da Segurança Social, comprovou-se que afinal não se verificaria. Problemas da “estrutura” da Segurança Social, assumindo que “defraudou” expectativas, diz-nos, agora, o ministro Siza Vieira, cognome “O Único”. Tudo desapareceu. Dizem-nos que alguns pagamentos já foram feitos e que, até ao final  da primeira quinzena de Maio serão feitos os restantes! E as empresas vão antecipar esses montantes para pagar aos empregados? E, não devemos estar desconfiados?

Quanto aos apoios financeiros de “milhares de milhões”, a conceder através da banca, merece, por si só, um artigo específico. No entanto, já estamos todos a constatar que “estas coisas levam o seu tempo”. Tradução: esperem sentados. E, não devemos estar desconfiados ?

Nesta última matéria, não é preciso ter um bola de cristal: no final do período de carência dos existentes, no início do período de reembolso dos novos empréstimos, os incumprimentos vão-se suceder (afinal não há milagres na economia real) e vamos ter, ainda mais, um tsunami de desemprego, PER’s, e Insolvências. E não devemos estar desconfiados?

Depois de ter lido comparações “impossíveis”, de gente do burgo com Winston Churchill, nada como uma citação dele: “Um pessimista vê uma dificuldade em cada oportunidade; um optimista vê uma oportunidade em cada dificuldade”.

No que toca à situação do País, em termos económicos, deve-nos tocar um decréscimo percentual do PIB com dois dígitos. Essa será a realidade. Mas sem austeridade? Devemos desconfiar!

Em termos de Saúde Pública, a ministra da pasta já disse tudo. Nem vale a pena desconfiar, será uma realidade.

Em termos mundiais, existe uma oportunidade. Dado que não temos mais nenhum lugar para ir, talvez a dita Civilização pudesse aproveitar “esta coisa”, para reanalisar e melhorar o nosso comportamento na única casa que temos – o Conhecimento.