Temos “várias vidas” a concorrer umas com as outras. Uma história. Uma pluralidade de relações. E uma diversidade de laços familiares que, em vez de nos sossegarem, em todos os momentos (de nos fazerem sentir aconchegados e seguros) nos fragilizam, muitas vezes. Temos relações que, tão depressa, nos mimam, nos dão colo e nos acolhem lamúrias e “birrinhas”, como, também, nos trazem desconsolo. E aflições. Somos (todos!) sensíveis, intuitivos e inteligentes. Mas frágeis. Pensamos, em tempo real, duma forma fulgurante. Contrariamos, a torto e a direito, as probabilidades de errar, de cada vez que discorremos e raciocinamos. Mas somos trapalhões e impulsivos. Falamos de forma atabalhoada. Muitas vezes, por murmúrios, “para dentro”, nas “entrelinhas” e por “meias palavras”. E fomos, vezes demais, educados a reprimir, a censurar ou a omitir o que sentimos. Já quando se trata de “abrir o coração”, de forma clara e interpelante, vivemos os conflitos como se eles nos afastassem dos outros em lugar de nos aproximarem e de nos ligarem a eles, de forma mais funda. E mais longínqua. Temos – é verdade que sim – recursos inacreditáveis que nos fazem pensar mais alto, mais longe e de forma mais complexa (e mais simples!). Mas nem sempre aquilo que temos se casa com tudo o que somos. E faz de nós pessoas melhores. Mais livres. Mais tranquilas. Mais firmes daquilo que queremos. Mais amadas e mais queridas. E mais saudáveis.

E, depois, gerirmos um corpo. Uma história, uma relação, várias famílias, um ou mais filhos, o trabalho, várias agendas, algumas contas, sonhos, projectos, medos e fragilidades. E um casamento que, por vezes, não é bem uma história de amor. E um trabalho que, amiúde, não nos diverte. E onde temos de aturar pessoas rezingonas, injustas e vaidosas. E outras coisas que nos apetecia que não fossem assim. E, depois, somos mal pagos. E a distância que vai entre aquilo que sonhámos ter e aquilo que temos, às vezes, só nos assusta. E, quando damos conta, passamos a vida a correr”. Temos listas de coisas que não páram de aumentar. Sentimo-nos a falhar em ”vários os lados”, ao mesmo tempo. Nem sempre a nossa vida tem “a nossa cara”. Conversamos pouco. Namoramos de fugida. Convivemos de menos. Temos “pouca vida”. Poucas são as vezes em que pensamos com tempo e devagar. Raras são aquelas em que “desligamos” e descansamos. “Varremos” para baixo do tapete muitas das nossas dores. Não andamos deprimidos e “a chorar pelos cantos”; pois não. Mas não abundam as circunstâncias em que nos sentimos entusiasmados. Em que tratamos a alegria “por tu”. E em que somos “movidos a paixão”. Não estamos todos doentes “da cabeça”; claro. Mas, considerando a saúde mental, somos menos saudáveis do que desejamos. E é tão fácil “desarrumar-mo-nos, por dentro”, que, apesar do turbilhão de coisas que nos remexem e exigem muitíssimo de nós, torna-se quase inacreditável como somos equilibrados. E como, apesar daquilo que nos “puxa para baixo”, vamos por diante. Somos guerreiros. E abnegados. E sensatos, até. E pomos garra nas coisas. E somos capazes de gostar. E de bem-querer. E de ser felizes.

Nunca, como agora, se falou tanto de saúde mental. Talvez porque, agora, nos sintamos emboscados por um vírus. Que não é um ser vivo. E não tem células. Que não tem um potencial energético. E que, por isso, nos “parasita”. Mas o mais irritante é que “os vírus passaram milhares de milhões de anos a aperfeiçoar a arte de sobreviver sem viver”. E, por momentos, considerando aquilo que somos, isso tem qualquer “coisinha” a ver com aquilo que parece que, por vezes, se passa connosco. Nos nossos piores dias.

Não somos doentes mentais. Somos, até, surpreendentemente, saudáveis, considerando tudo aquilo que nos “estica”; por todos os lados, todos os dias. Mas, considerando a maioria de nós, estamos longe de ser pessoas tão saudáveis como podíamos ser. Basta que, por breves momentos, paremos para dar conta que, em 2019, os portugueses compraram nove milhões de embalagens de antidepressivos. E que, de Janeiro a Março do ano passado, foram vendidas mais de cinco milhões de embalagens de ansiolíticos e de antidepressivos. Ou que reparemos em muitos dos consumos excessivos que – à conta daquilo que está desarrumado, dentro de nós – quase todos acabamos por ter. Ou na forma como, muitos de nós, somos mais “workaholics” do que devíamos. Ou que atentemos em muitas doenças para as quais o nosso “estilo de vida” contribui, por desmazelo, diariamente. E se, a isto, associarmos uma pandemia. Com confinamentos. Distanciamento. Alterações radicais de rotinas. Quarentenas. Teletrabalho. “Liberdade condicional”. “Prisão domiciliária”. As crianças em casa. Uma crise enlouquecida da economia. Os conflitos familiares a tornarem-se banais. O “fantasma” da precariedade e da insegurança no trabalho. Os números de infectados e de mortes sem fim à vista. E nós a “engolirmos” o medo e a chorarmos para dentro. Aquilo de que talvez não se devesse falar era de saúde mental. Só; sem mais. Porque os nossos recursos saudáveis não são intermináveis, e não aguentam todos os maus-tratos, aquilo em que devemos insistir terá de ser, antes: do que é que precisamos mais para perceber que a saúde mental não pode ser tributada com “imposto de luxo”? E como é que podemos aproveitar a “descoberta” que ela representa para passarmos a tratá-la melhor e como “bem de primeira necessidade”?

Pensamos! Mesmo sem querer. E sentimos. Sentimos fundo! Teríamos, se fosse preciso, “mil motivos” para não estar bem. E, ainda assim, as coisas “correm”. Sem raios de sol – é verdade – muitas vezes. Mas bem… zinho”, noutras, considerando tudo aquilo que podia estar (mais, ainda) “virado do avesso”. Por tudo isso, do que estamos à espera para – no meio de todos os “confinamentos”  com que vamos vivendo, e daqueles que a pandemia acabou por nos trazer – para se desconfinar, de vez, a saúde mental?

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