A ideia de que nascemos com “queda” para uma determinada área do conhecimento não é  bem assim. Essa “tendência natural” representa, antes, o resultado de um longo amealhar de pequeninas aprendizagens que, sem se dar por isso, acaba por acontecer. Começando com a família onde se nasceu, que propicia experiências, áreas de interesse, meios de compreensão e estímulos que, todos juntos, criam as condições para que surja aquilo a que se chama “talento nato”. Que vai fazendo com que uma criança “apanhe no ar” um conjunto de dados e de sinais e, diante deles, desenvolva os seus algoritmos pessoais duma forma tão fulgurante que desconstrói, analisa, interpreta, discorre e formula, dum modo abstracto, e em síntese, aquilo que parecerá emaranhado, pouco disponível para a surpresa ou indiferenciado para muitas outras pessoas. E esse percurso de diferenciação continua com a escola. Com a versatilidade da formação de um professor. E com a forma como ele se relaciona com as crianças. Não só como as leva pela mão do espanto à descoberta como as acolhe, duma forma maternante, na aventura de conhecer. Na verdade, não há crianças com “ vista grossa”. Veja-se, por exemplo, aquilo que se passa com a educação visual: como a maioria dos pais não teve uma sensibilidade educada para a expressão visual, e porque o ensino de educação visual não merece o mesmo cuidado e a mesma atenção que o do português, por exemplo, é normal que se alimente a ideia que há crianças que são talentosas para a expressão visual e outras não, não havendo, sequer, explicações dedicadas à recuperação (ou à conquista) dessa aprendizagem. A verdade é que nem sempre os nossos filhos encontram quem os ajude a ligar aquilo que a sua sensibilidade lhes dá a ver com argumentos simples que os levem a que isso ganhe sentido e se torne inteligível para eles. O que lhes cria várias necessidades educativas especiais e muitos conhecimentos que necessitam de recuperação.

A isso acrescem-se muitos outros “pequenos-nada” que trazem conhecimentos a precisar de recuperação. Por exemplo: quando um educador de infância transforma o seu trabalho num infantário em ensino pré-escolar pode estar a comprometer aprendizagens no médio prazo em função de brilharetes mais imediatos. E isso cria conhecimentos que estão em perigo antes de se chegar a eles. Porque não se apanhou o raciocínio que faz com que uma criança intua e compreenda para que, a seguir, represente um conhecimento e discorra sobre ele. Segundo exemplo: quando um professor ensina os seus alunos à pressa, “colando” conhecimentos, para que, uns dias depois, eles tenham desempenhos vistosos numa prova de aferição, ele pode estar a comprometer a aprendizagem duma criança no seu futuro imediato. Porque, mal ela percebe que há áreas de conhecimento que não são nem claras nem simples para si, desinteressa-se daquilo que não entende, levando a que conclua que “não é boa” nessa área de conhecimento. “Fugindo” dela, a seguir. Terceiro exemplo: quando um professor do primeiro ciclo, por mais que se empenhe a transformar uma determinada matéria em conteúdos claros, não consegue deixar de ser melhor professor nas áreas de conhecimento que mais o interessam, e que melhor aprendeu a desconstruir, e pior professor nas áreas que menos “domina”, é muito fácil que, em condições normais, se criem limitações às áreas de conhecimento em que ele não consegue ser entusiasmante. Todas estas dificuldades são, sobretudo, da responsabilidade da escola, claro, mas, igualmente, da responsabilidade das famílias que, sem se aperceberem, não trouxeram argumentos para que uma criança recupere conhecimentos em todas as áreas em que a sua aprendizagem se fragilizou.

Não é, portanto, por acaso que muitos de nós, à primeira vista, não tenhamos, nascido com “queda” para a educação musical, para a educação visual ou para a matemática. Por mais que as intenções e o espírito de missão de quem nos ensinou não mereçam reparos, a verdade é que a forma como muitos dos conhecimentos que nos foram trazidos nessas áreas condicionou e comprometeu o jeito de os perceberemos. E, daí, foi-nos dando a ideia de termos mais “queda” para umas áreas da aprendizagem do que para outras. O que faz com que, muito depressa uma criança chegue à conclusão que, não sendo “boa” nessa área, não se interesse. Desinvista. E, em “suaves prestações”, vá acumulando limitações na forma como mexe nela. O que, depois, leva a que, qual músculo que atrofia, ela deixe cair aquela área como se essa limitação fosse um “defeito” só seu.

Tudo isto, até aqui, serve para conversar convosco acerca do impacto da pandemia na recuperação das aprendizagens. Na verdade, aquilo a que chamamos recuperação não tem só a ver com o resgate do tempo perdido que muitos conhecimentos sofreram com a pandemia. Na maior parte das vezes, recuperar aprendizagens será, muito mais, conquistar aprendizagens. Como sabemos, um ano lectivo de “maus tratos” em relação ao ensino de uma determinada área compromete as aprendizagens nessa área no ano seguinte. Porque as aprendizagens são como puzzles que se “encaixam” e se articulam umas com as outras. Dois anos seguidos de limitações numa determinada área de conhecimento condicionam-na e comprometem-na duma tal forma que se torna quase impossível reverter esses vícios de forma nos anos seguintes, contribuindo essa área de conhecimento para que se crie um “mau aluno”. Sendo raros, mais muito eloquentes, os exemplos de crianças que, com um professor especial, passam do “ódio de estimação” a uma determinada disciplina para a paixão. O que diz bem que as “quedas” para um ou outra área de conhecimento não são “defeitos de fabrico”. Mas necessidades educativas especiais dum sistema educativo a quem, por vezes, falta humildade para se recriar.

Por isso mesmo, ao irem agora para férias, os nossos filhos confrontam-se com números um bocadinho eufóricos de recuperações de aprendizagens relativamente ao período da pandemia que podem ser um bocadinho “batoteiros”. Aquilo que as crianças não aprenderam com o ensino à distância na pandemia e com as avaliações muito sui generis (e, nalgumas circunstância, muito colegiais) que ela acabou por trazer, elas não irão recuperar facilmente. Aliás, aquilo que não aprenderam vai comprometer o que lhes teremos para dar já no próximo ano lectivo. E no seguinte. E no seguinte. Dramático será que as consequências da pandemia para muitas crianças só se faça sentir, de forma clara, tarde demais. Quando muitas delas pareçam ter passado a ter necessidades educativas especiais nalgumas áreas. E muitas outras tenham descoberto que, depois dela, passaram a não ser boas nessas áreas. A mim não me preocupa tanto a escola como elevador social. Por mais que isso seja indispensável para que se construa uma democracia com brio. A mim preocupa-me que elas todas, a propósito de cada área de conhecimento, carreguem no botão do elevador para subir.  E, para sua surpresa, ou ele não saia do zero. Ou, em vez de ascender, desça para os pisos inferiores. Contra a sua vontade! Não se trata, portanto, de recuperar aprendizagens. Muito menos no sentido de remediar ou de encontrar “pensos rápidos” para “fracturas expostas”. Mas de recuperarmos milhares e milhares de crianças para a aprendizagem. Recuperar para a aprendizagem não significa que devamos devolvê-las aos conhecimentos que perderam. Mas, antes, dar-lhes os conhecimentos a que não conseguiram chegar. E, sobretudo, dar-lhes os instrumentos para os aprenderem de forma cada vez mais autónoma. Para que elas não alimentem a ideia que têm “queda” para umas coisas e não são “boas” noutras. Não devíamos aproveitar as férias para fazermos o “trabalho de casa” no sentido de as protegermos para que a sua relação com a escola não tenha, com a pandemia, ficado comprometida? Não é isso que todos queremos?

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