“O que temos de garantir é que esta crise económica, que se desenha como um risco no horizonte, não se transforme numa crise financeira.” A frase é do governador do Banco de Portugal Mário Centeno na conferência da CNN, esperando que tal não aconteça porque a Zona Euro está hoje mais bem preparada e porque o BCE vai lançar o tal mecanismo “anti-fragmentação”. O presidente do Eurogrupo, o ministro irlandês das Finanças Paschal Donohoe manifestou-se no mesmo sentido, dizendo que hoje as circunstâncias são diferentes e a Zona Euro tem agora uma arquitetura mais forte.
O fantasma da crise das dívidas soberanas, iniciada em 2010 com a Grécia, é o pesadelo dos banqueiros centrais e dos governos. E é o que tem travado o aperto da política monetária na Zona Euro, apesar de o valor da taxa de inflação dizer que os juros já deviam ter subido e que o aumento programado de 0,25 pontos em Julho e outro tanto em Setembro é manifestamente pouco.
As mensagens que têm sido transmitidas vão todas no sentido positivo, sublinhando que a Zona Euro está hoje diferente. É verdade que está diferente, mais protegida por um lado, mas menos por outro. Já lá vamos. O que se mantém é, como seria de esperar, a diferença na hierarquia de valores entre o Norte – protagonizado pela Alemanha – e o Sul, liderado em geral pela França, com aliados como Itália e Espanha, para falar apenas dos grandes, porque Portugal está também neste grupo. Combater a inflação é a prioridade do Norte, representado pelos falcões no Conselho de Governadores do BCE, e que tem até agora perdido a sua batalha no campo técnico.
A grande diferença – pelo menos por enquanto – está na atitude política, mais benigna. No início da crise das dívidas soberanas ouvimos a chanceler Angela Merkel dizer que as pessoas dos países do Sul deviam tirar menos férias e reformar-se mais tarde. Embora estejamos muito longe dessa atitude, que colocou o Norte contra o Sul, soubemos que o ministro das Finanças alemão Christian Lindner manifestou à presidente do BCE a sua discordância quanto à perspectiva de fragmentação da Zona Euro, dizendo que não identifica esse risco. E que falar disso é que cria um risco de falta de confiança, pressupondo-se que também discordou da inédita iniciativa do BCE de convocar uma reunião de emergência dia 15 de Junho.
Estamos muito longe das tensões políticas dos anos de 2011 e 2012, mas as recentes tomadas de posição mostram que o que realmente cada um pensa não mudou. É difícil admitir que países como a Alemanha, a Holanda ou a Finlândia não pensem que os países que estão agora a ser mais atacados pelos investidores – vendo as suas taxas de juro a subirem – pouco fizeram para corrigir a sua situação económica e financeira. Para já os discursos são politicamente correctos, esperamos que assim continuem.
A diferença mais preocupante em relação a 2010 é que a Zona Euro como um todo está mais endividada, mas há uns que estão melhor e outros pior. E quem são os que estão pior? Com excepção da Irlanda, que teve em 2021 uma dívida inferior à de 2010 (56% versus 86% do PIB), todos os que estiveram sob pressão ou foram resgatados em 2010 estão hoje com uma dívida superior. Estamos a falar de Itália, Espanha, Grécia, Portugal e a própria França, como se pode ver na base de dados da Ameco.
Esse é o lado “mau”, digamos assim. O lado “bom”, o que alimenta a esperança de que desta vez será diferente é, não apenas a atitude política, mas especialmente, e mais importante, a situação dos bancos e as ferramentas que hoje a Zona Euro tem à sua disposição. Tudo indica que os bancos estão hoje mais sólidos do que na altura em que assistimos a falências, nacionalizações ou salvações um pouco por todo o lado, com o colapso do sistema bancário irlandês. Em Portugal vimos o resgate do BPN, BES e Banif e a falência do BPP, assim como o pedido de ajuda, directo ou indirecto, das principais instituições financeiras do país.
Hoje a Zona Euro tem também o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE ou ESM na sigla em inglês) que pode “dar assistência financeira aos países do euro que enfrentem problemas de financiamento”. Além disso, e contrariamente à abordagem de 2010 – crise que é filha da crise financeira iniciada nos EUA em 2007 –, a União Europeia tem actualmente aquilo que se pode designar como uma “ferramenta keynesiana”, desenhada para evitar o efeito recessivo da pandemia, e que se chama Plano de Resiliência e Recuperação.
A inflação é outra grande diferença, favorável aos países endividados, mas com um efeito final difícil de antecipar. É o combate à inflação que pode gerar a tempestade financeira, mas é, no curto prazo, a inflação que desvaloriza a dívida e aumenta a receita de impostos, com especial relevo para o IVA, facilitando a redução do défice.
Mas a diferença que faz toda a diferença está no papel do BCE que, a partir de 2012, com a famosa frase do então presidente Mario Draghi – o “whatever it takes” para proteger o euro – e a consequente acção de compra de dívida pública quebrou um tabu. O anúncio de deixar de comprar dívida pública mas, em contrapartida, criar uma ferramenta anti-fragmentação anunciada na reunião de emergência do BCE de 15 de Junho é a herança dessa porta aberta por Draghi. Mário Centeno entende que pode chegar o anúncio, para moderar os ímpetos dos investidores de vender a dívida pública de países como a Grécia, Itália, Espanha, Portugal e até França.
Mantidas as devidas distâncias e diferenças, até porque os bancos centrais têm um poder infinito de imprimir dinheiro, também na crise de 1993 do mecanismo de taxas de câmbio do sistema monetário europeu se pensou que se podia moderar o ataque às moedas e vimos o Banco de Inglaterra ficar sem divisas. Mais uma vez sublinhe-se que o poder de fogo do banco central a imprimir notas é infinito, mas paga-se com inflação e nem todos os países do euro estão dispostos a continuar a ver a dívida pública a ser monetizada, mesmo que agora se chame ferramenta anti-fragmentação. Até agora comprar dívida era transitório, com o que se começa a desenhar parece ser um apoio eterno aos endividados.
Entre os factores positivos e negativos, a balança pende para as diferenças positivas que protegem mais os países mais endividados do euro e, como tal, a moeda única. Desta vez pode ser diferente, podemos estar mais protegidos de uma possível tempestade financeira, que pode até nascer nos países em desenvolvimento pelos efeitos da guerra. Verdadeiramente ninguém sabe. Mas a Comissão Europeia e o Conselho Europeu faziam um grande favor à solidez do euro se, em tempos de crescimento económico, fossem mais exigentes com os países, como Portugal, que resistem em fazer reformas politicamente difíceis, mas que lhes abrem a porta uma prosperidade mais rápida.