Este é, sem dúvida, um título longo, justificado pela dificuldade e perplexidade em compreender o alcance do que está a ocorrer num mundo onde tudo parece estar em causa:

  • Um mundo onde uma vitória de Putin sobre a Ucrânia, abriria caminho à restauração do Império Russo sobre os países Bálticos, seguindo-se a Polónia e, depois, a instalação de Governos amigos de Moscovo em Berlim, Paris e Roma, entre outros.
  • Um mundo onde a China de Xi, tendo substituído o paradigma do crescimento económico de Deng Xiao Ping pela vocação militar de dominação da Ásia, se prepara para invadir a Formosa, inevitabilidade que nenhum analista hoje já contesta. Será a repetição do que o Japão fez no início do Séc. XX e que levou os EUA a entrar na Segunda Guerra Mundial.
  • Um mundo onde a potência dominante, os EUA, mobilizada pelo culto pessoal a Trump, se pode vir a desligar da sua influência tutelar global, desfazendo as instituições militares e económicas que ordenaram, desde 1945, as relações internacionais, e assim abandonar a Europa às suas patologias congénitas e vizinhanças assassinas.

Para este panorama planetário negro, só falta acrescentar o contributo das alterações climáticas que alguns ainda se afadigam a desmentir como sendo puras invenções ou exageros. E isto apesar de inúmeros incidentes nefastos como o que aconteceu neste Verão em Londres que viu alguns dos seus bairros a auto-incendiarem-se, ou apesar dos incêndios florestais na Califórnia e na Europa, ou ainda das cheias no Paquistão, ou dos ciclones e tornados que impõem um ritmo de destruição nunca visto. Perante estes cenários de fim do mundo, que melhor podemos fazer do que procurar inspiração na História passada, preparando-nos para o pior e, claro, todavia esperando o melhor?

Mas vamos por partes. Vivemos hoje com um constante e radical ímpeto em colocar em causa o nosso modo de vida, sobressaindo aqui o crescente desprezo pela forma de organização social que atribui ao indivíduo um papel crucial, ou seja, pela democracia. O interesse agora – muito em resultado do desespero que resulta das crises – volta-se para alternativas mais encantatórias, que apelam à intervenção de personagens supostamente iluminadas. Olhando para o caminho da humanidade, é bem possível concluir que a forma de organização mais frequente nas sociedades humanas não foi a democracia, mas sim a ditadura, liturgia que, tendo sido encontrada primeiro para nos proteger nas cavernas há umas dezenas de milhares de anos, serviu depois para o crescimento das metrópoles e impérios que se foram formando e desfazendo ao longo dos séculos. Na verdade, qualquer grupo de pessoas ou sociedade tem necessidades e objectivos comuns de sobrevivência, pelo que o mais prático é que esteja disponível para aceitar um chefe que decida, em cada momento, que necessidades e objectivos são esses. Em nome dos interesses comuns, os elementos do grupo abdicam da sua individualidade e capacidade de racionalização em favor da autoridade do chefe. Assim foi ao longo dos tempos. Por simplificação organizacional, acabou por se aceitar o dogma de que filho de chefe, chefe será. A menos que, como tantas vezes aconteceu, a ambição pessoal e a força bruta decidam por outra solução. A figura do Rei adquiriu assim, ao longo dos séculos, uma legitimidade natural e indiscutível. Ilustres excepções à regra da hereditariedade do chefe também existiram no passado, como foi o caso do grande império mongol do Séc. XIII, que, partindo do deserto asiático, conquistou o mundo, mas onde o chefe era escolhido entre os considerados mais capazes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A regra da submissão vitalícia ao chefe como forma única de organização social contou, no entanto, com duas excepções de enorme relevo, que marcaram indelevelmente a História da Humanidade: a descoberta da democracia em Atenas e a expulsão dos Reis em Roma, fenómenos que ocorreram sensivelmente na mesma altura, uns cinco séculos antes da nossa era. Atenienses e Romanos chegaram à mesma conclusão: os negócios públicos são importantes e complexos demais para serem deixados ao arbítrio de um único ser, ainda por cima quando a sua principal característica é a de ser filho do chefe. Fizeram-no, no entanto, por razões diferentes. Enquanto os atenienses, ao descobrir que o comércio traz riqueza, perceberam a importância capital do papel do indivíduo no sucesso da economia, os romanos, que sempre olharam para o mundo à sua volta como terras e povos a submeter, privilegiaram a competência militar e a dedicação organizativa, ou seja a meritocracia. Uns e outros elegeram chefes com competências reais e mandatos limitados, acabando por inventar o conceito da República. Poderiam ser chamados de ditadores, mas tinham um mandato preciso, objecto de escrutínio e, sobretudo, limitado no tempo.

Se Atenas deu um contributo galáctico para que a Humanidade avançasse na compreensão das coisas e no desenvolvimento intelectual do Homo supostamente já Sapiens, os Romanos conquistaram e fizeram à sua imagem o que na altura era todo o mundo conhecido para além da China. Foram sucessos que ainda hoje nos maravilham. Como se sabe, Atenas acabou depois voluntariamente engolida no Império Romano, mas este, a partir de César Augusto, foi mudando de paradigma, preferindo mesmo considerar o chefe com um deus e respeitar a sua natureza hereditária. As democracias grega e romana acabaram, afinal, por ser um intervalo na nossa caminhada, mas o seu contributo ultrapassou tudo o que as ditaduras de chefes inquestionáveis tinham produzido e muito mais do que iria ser feito depois. Gregos e romanos provaram que lideres escolhidos por voto e com mandatos limitados podem produzir melhores resultados.

As vantagens da Democracia e da República teriam, no entanto, de esperar muitos séculos para serem depois redescobertas em Inglaterra e, já nos finais do Séc. XVIII, nos novos Estados Unidos da América e em França. Mas a Revolução Francesa acabou por se transformar rapidamente numa ditadura terrorista que descobriu depois a magia de um autoproclamado Imperador que, com a sua queda, fez regressar de novo os Bourbon, esses, sim, Reis por direito hereditário. Quanto à República em França, ponto final parágrafo até ao final do Séc. XIX.

Aquilo a que assistimos hoje no Séc. XXI é, de novo, a desvalorização das regras de convivência democrática e o crescimento das forças que nos empurram para o braço de salvadores – detentores, por definição, de um ADN superior – que, como sabemos da História, têm uma grande vocação para nos levar ao precipício. Hoje, vivemos cativados por figuras como Trump que espera o momento do regresso, como Bolsonaro que não sabe o que pensar, como Putin que, temendo perder o sonho de devolver a glória imperial à Rússia, olha nervosamente para o botão nuclear, e como Xi que se autopromoveu a líder vitalício com a sagrada missão de levar a China à vitória final, desta vez não comercial, mas antes militar. O Séc. XX foi aliás rico no contributo mítico de grandes líderes que, sob bandeiras de base nacional, encheram a História de sangue, suor e lágrimas. Hitler, Estaline, Mao Tse Tung e outros com menor capacidade de destruição adubaram o mundo com milhões de mortos em nome da superioridade do seu terreno, da sua raça e do seu credo.

O nacionalismo que vemos vingar hoje, vem novamente a reboque de discursos populistas. Populismo e nacionalismo não são naturalmente a mesma coisa, mas na prática fazem um par com sucesso garantido. Enquanto o populismo promete o paraíso ao virar da esquina, o nacionalismo serve para fazer acreditar que é por pertencermos a um grupo eleito, que o paraíso estará à nossa espera.

Sobre a força destruidora dos nacionalismos, vale a pena uma referência à recente obra magistral de J. Bradford DeLong com o título em inglês que traduzo para “Destruir em Direcção à Utopia”. DeLong procura, primeiro, perceber quando e como a Humanidade teve melhores dias e desmente a ideia formada de que o caminho do desenvolvimento tenha sido consistente ao longo do tempo. Pelo contrário, afirma que, entre 6 mil anos antes da nossa era e o Séc. XVI, a riqueza global não terá variado muito. Alguns altos e baixos, um pequeno saldo positivo, mas nada de significativo. Relevante foi o contributo dos navegadores Portugueses e Espanhóis, que tornaram possível o comércio global, que existia até aí apenas para artigos de luxo e que, com a diminuição dos custos de transporte, assumiu uma dimensão muito maior. A primeira globalização – que leva o nome de Vasco da Gama e de tantos outros – teve como resultado dar à Europa uma força económica que esta jamais havia conhecido.

Mas as guerras constantes e os diminutos avanços tecnológicos, para além dos ocorridos com a navegação, limitaram o impacto económico e travaram a tendência positiva. Foi preciso aguardar pelo último quartel do Séc. XIX quando, a partir de 1870, após o efeito cumulativo de quase 100 anos de revolução industrial, e com o exponencial aumento da capacidade produtiva resultante da utilização do carvão na maquinaria têxtil, nos caminhos de ferro e na navegação, a riqueza global acabou por saltar para níveis nunca, mas mesmo nunca antes vislumbrados. O milagre do crescimento aconteceu em resultado da conjugação desta nova capacidade produtiva e dos baixos custos de transporte (com o fim do cavalo e do barco à vela), tudo num quadro de livre movimento de pessoas e de abertura ao comércio internacional. Não esquecer que, de 1870 a 1914, emigraram mais de 100 milhões de pessoas que deixaram o seu local de nascimento à procura de melhores condições de vida, e que tal só foi possível por não existirem barreiras à emigração e porque o custo de atravessar os oceanos deixou de ser uma restrição, mesmo para os mais pobres.  Em 1914 tínhamos atingido um nível de riqueza global nunca sonhado, embora o tema da redistribuição seja de actualidade posterior. Segundo DeLong, enquanto em 1870 cerca de 70% da população mundial vivia abaixo do limiar de pobreza, esta proporção hoje será de apenas 9%.

No entanto, esta magnificência, em grande medida europeia, autodestrói-se na I Guerra Mundial. Os impérios europeus – as enormes potências industriais e coloniais inglesa, francesa e alemã, o histórico Império Austríaco e a grande Rússia Imperial – consumiram-se todos por decisões políticas dos seus líderes que colocaram as questões de honra nacionalistas à frente de tudo e de todos. Está suficientemente documentado o que foram as semanas loucas que ocorreram antes da deflagração da guerra no início de Agosto de 1914, com a pressão entusiasmada dos políticos nacionalistas, que impuseram como inevitáveis declarações que inflamaram as opiniões públicas sobre uma guerra que tudo iria destruir. O período de crescimento económico mais intenso que a Humanidade havia conhecido (entre 1870 e 1914), acabou por ser consumido no fogo purificador dos medos e receios dos vizinhos, que nenhum mecanismo de entendimento supranacional foi capaz de apagar.

A força dos nacionalismos no desencadear de mais esta guerra iria reforçar-se numa Europa empobrecida do pós-guerra, que promovia a autarcia como solução, pondo deste modo fim ao comércio global, e fazendo desparecer, assim, as indústrias e o emprego que o sustentavam. O nacionalismo alemão, alimentado pelo partido nazi nos anos 30, justificava-se mesmo pela necessidade de um ajuste de contas face à derrota na I Guerra Mundial, que, delirantemente, considerava como tendo sido provocada por traidores internos. Para os nazis, o êxito da nova Alemanha Hitleriana repousava na profundidade da vingança sobre os traidores e na força disponível para a conquista dos vizinhos. Mais a leste, uma nova religião evangélica de salvação do mundo servia a Estaline, um psicopata assassino, para a reconstrução do novo Império russo. No rescaldo da Segunda Guerra surge mais um evangélico iluminado, Mao Tse Tung, que irá sacrificar a sua grande comunidade milenar aos piores exercícios imagináveis de automutilação física e intelectual, realidade que, só nos finais do Séc. XX, com a salvação capitalística de Deng Xiao Ping foi finalmente sustida.

Na Europa de hoje não faltam candidatos a salvadores à procura de fiéis devotos ao superior desígnio da Nação. Le Pen, Abascal, Salvini, Meloni, e tantos outros, propõem a salvação da civilização, fechando as fronteiras, desconhecendo ou fazendo esquecer que foi nos momentos em que a actividade económica se globalizou que o mundo cresceu em riqueza e que foi nos períodos de autarcia que a pobreza dominou. Como é possível ainda hoje defender a autarcia e a desconfiança dos vizinhos, numa Europa de nações que se destruiu ciclicamente ao longo dos séculos, e que foi recuperada pela última vez depois da derrota nazi em 1945, graças ao contributo da política e do capital americano e de uma rede institucional de partilha de problemas e soluções que dá pelo nome de projecto Europeu? Como esquecer que a impossibilidade histórica de diálogo entre a França e a Alemanha só foi quebrada por Jean Monnet a partir de 1951 com a criação da Autoridade do Carvão e do Aço, que, precisamente, desnacionalizou, na Europa, o tema do acesso a estas matérias-primas? Que propõem agora os nacionalistas? O regresso ao passado? Vamos à guerra?

Não é fácil seguir, racionalmente, um líder nacional populista europeu quando este fala da ditadura de Bruxelas, referindo-se a decisões preparadas por uma administração que é suposto não responder a interesses particulares nacionais e que tem reputação de competência, decisões essas que depois são aprovadas ou não em colégios de ministros e de Chefes de Governo eleitos de todos os países-membros. O que se faz em Bruxelas não se ajusta propriamente ao conceito de ditadura, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, em Fevereiro deste ano em Moscovo, quando a maioria dos dirigentes russos descobriu que tinham em curso uma operação militar contra a Ucrânia.

A guerra, para um nacionalista, acaba por ser o corolário lógico da sua fé. A glorificação da nação amada, justificada infantilmente através da mistificação da História, é, sem dúvida, um objectivo atraente, mas geralmente para ser atingido à custa do vizinho que se odeia e receia. Mas o que se ganha com a guerra? No Financial Times, Martin Wolf dizia que um cidadão russo normal em nada beneficiaria com a conquista da Ucrânia, tal como um cidadão normal chinês com a conquista da Formosa. Mas a realidade é que um político populista e nacionalista só tem de fazer acreditar aos seus seguidores que a salvação vem pela Nação, apesar da evidência económica dizer exactamente o contrário. Já quanto ao valor da ideologia na política, ela é, como dizia Morgenthau, puramente instrumental, pois o objectivo é sempre a aquisição de poder.

Neste quadro, o que nos espera? A leitura da História não daria aqui um contributo para uma saída muito positiva já que imbróglios destes em que ninguém se entende, nem se quer fazer entender, terminaram sempre mal. Na idade nuclear, o mal tem uma consonância macabra muito particular. Será que existe algum indivíduo, classe, organização, corporação ou País em condições de impor aos outros uma solução de convivência, como Roosevelt fez para o pós-guerra, mas desta vez para além da pacificação do Atlântico e do Pacifico, incluir também a sobrevivência do planeta? Como se viu em Julho de 1914, bastaria que os responsáveis das principais potências se assumissem como cidadãos do mundo, e não como guardadores de rebanhos, para que a guerra se tornasse incompreensível. Como seria possível essa clarividência hoje? Onde estarão esses dirigentes?

O mundo que se globalizou profundamente, parte-se agora em vários núcleos políticos e económicos. Para os que vivem neste velho Continente, que saída existe para a Europa? Com o bloco americano de um lado e o chinês a esgrimir abertamente armas como num torneio para a consagração de um novo chefe, que futuro temos? Ora acontece que, teoricamente, a Europa tem futuro, sim. Beneficia de dimensão económica e humana suficiente para dialogar em pé de igualdade com as outras potências. Não tem ainda força militar, o que limita no imediato a sua capacidade de persuasão, mas pode muito bem corrigir esse défice. Até hoje, como dizia Peter Sloterdijk, o que esteve na base do projecto europeu – que se tornou numa entidade de 450 milhões de pessoas, sem imperador nem projecto imperial – foi o resultado do fracasso histórico de uma dúzia de projectos nacionais-imperiais. São 27 países unidos, exclusivamente, por uma visão de coexistência tão livre quanto possível, tão cooperante como factível.

Mas as leis da física desta Europa num mundo à beira do precipício atingiram o seu limite funcional. Cercada por forças agressivas e contraditórias, as tensões dentro da Europa estão à vista de todos, mesmo entre o casal franco-alemão. As dificuldades arriscam-se a ficar mais cruas por força de uma guerra que, mesmo assim, ainda está fora de portas. Com os automobilistas a franceses a parar o País por uns cêntimos a mais no custo da gasolina, com os italianos indisponíveis para encontrar uma solução para os migrantes, com os alemães a pensar que o problema das suas fábricas se resolve estendendo passadeira vermelha aos russos, como iria um Churchill do Séc. XXI apelar aos sacrifícios sem os quais não se ganha o direito à liberdade?

Será que não temos solução? Estaremos mesmo perdidos? Condenados a ser governados por comissários chineses, ou subcomissários russos de comissários chineses? Num planeta sem água e que arde sem controlo? O que falta para encontrar uma saída, como tantas vezes foi possível acontecer no passado? Porque não fazemos como os gregos e os romanos e damos poderes reais a alguém, para ultrapassar esta fase, escrutinando os resultados e limitando naturalmente o mandato no tempo. Talvez um Presidente e um Governo para a Europa? Impossível? A sério? Ou haverá outra solução?

Falta algo, de facto, para resolver o que, neste momento, nos parece não ter solução. O que sobra, com certeza, são os nacionalistas.