Quando, nos finais dos anos 30, Hitler se convenceu de que tinha chegado o momento de reconquistar para a Alemanha a posição cimeira que ele considerava resultar do direito histórico e da supremacia de raça, muitos na Europa simpatizavam com a justeza da causa nazi. A Alemanha hitleriana representava, para a Europa e para o Mundo, a pujança viril do ideal nacionalista destinado a limpar a sociedade da paz podre e incompetente das democracias liberais e do pecado do comunismo, numa cruzada sob a direcção de um chefe redentor. As potências europeias – como a França e a Inglaterra – que tinham condições económicas e militares para se lhe oporem, estavam paralisadas por opiniões públicas que ou não queriam a guerra, ou sonhavam mesmo em copiar soluções idênticas às alemãs para dentro das suas fronteiras.

Como primeiro passo da sua caminhada para a glória, Hitler queria que a Alemanha se fundisse com a Áustria, a nação germânica do Sul, para de seguida recuperar terrenos do antigo Império dos Habsburgos e depois absorver a Polónia, exterminando os indígenas e distribuindo as terras por colonos alemães. A este desenho grandioso e sanguinário de conquista militar de um Império maior do que aquele que tinha sido perdido em 1918, opunham-se timidamente os generais alemães, conscientes das dificuldades de um exército recentemente reconstituído e com material de guerra ainda não testado. Dando-lhe razão, a entrada para o casamento com os germânicos do Sul começou por correr muito mal, com as colunas militares alemãs que entraram na Áustria a ficarem paralisadas por problemas mecânicos e de aprovisionamento. Ultrapassadas as dificuldades e recuperado do susto, lá segue Hitler para Viena, onde a sede da vingança sobre a derrota na I Grande Guerra deu, finalmente, lugar ao delírio. O caminho para a reconquista estava aberto, os generais alemães foram silenciados e os primeiros-ministros da França e da Inglaterra lá iam capitulando, preocupados em salvar a face de Hitler, mas tentando evitar a sua escalada guerreira. Para estupefacção de todos, Hitler não tem sequer problema em se associar a Estaline para a partilha do leste da Europa.

Tudo iria na perfeição, não fora terem aparecido as primeiras dificuldades: (a) os polacos recusaram-se a aceitar os conselhos de realismo e de abnegação que a França e a Inglaterra lhes tentavam impor e disseram que não se rendiam e (b) em Inglaterra, um sobressalto cívico leva ao poder um dirigente não interessado em salvar a face de Hitler, mas disposto a lutar pelos valores de uma sociedade aberta. Churchill apela ao sangue, suor e lágrimas que podem salvar a civilização ocidental e claro, pelo caminho, salvar também o Império Britânico. Não promete facilidades, nem conforto, mas dá o toque de rebate que os britânicos entendem para se levantarem. Sem Churchill e sem o apoio económico e militar americano que Roosevelt conseguiu proporcionar, a Inglaterra seria destruída pelo III Reich e a Europa muito provavelmente chegaria ao Séc. XXI a falar alemão e com o braço direito levantado.

Mas a capacidade de manter a espinha dorsal direita – apanágio dos ingleses – nem sempre aconteceu no Continente europeu. A potência militar francesa é destruída fulgurantemente pelo exército alemão e, ocupada Paris, o Governo francês refugia-se em Bordéus onde, apesar dos insistentes apelos à resistência que lhe lançam Churchill e o Governo britânico, opta por se render. Os novos dirigentes franceses autoconvenceram-se de que, pela mão dos alemães, a França iria atingir o modelo nacional e religioso com que a extrema-direita francesa sonhava. O que aconteceu foi, como se sabe, bem diferente e a orgulhosa França vai conhecer as agruras e humilhações de ser tratada como uma nação vencida e ocupada. Churchill dizia que aos europeus foi dada a escolha entre a guerra e a desonra, mas que ao optarem pela desonra acabaram por ter na mesma a guerra.

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Avancemos para 2022 quando a Rússia, dirigida por um Putin ungido com a missão sagrada de reconquistar para a sua nação a glória perdida com o fim da União Soviética, toma (tal como Hitler) a decisão solitária de se lançar numa Operação Militar Especial para obter um Anschluss com o povo irmão da Ucrânia. Kiev é, aliás, a raiz histórica do grande povo eslavo que, cristianizado há mil anos e sob a liderança totalitária de Czares guerreiros, se vai alargar para leste e para oeste, numa extensão territorial única no planeta. Para Putin, uma sociedade democrática em parte da antiga Grande Rússia, era um foco de contágio inaceitável para o seu regime totalitário.

Putin tinha já conseguido reinventar no Séc. XXI a sociedade czarista que tanto fascínio sempre exerceu dentro e fora da Rússia: (1) um dirigente iluminado e sem contraditório possível; (2) uma classe de senhores feudais (agora chamados de oligarcas), que têm a garantia da apropriação das rendas da economia nacional; (3) uma classe de servidores desprovidos de direitos e (4) uma Igreja Ortodoxa que mantém a população dócil. Se retirarmos a internet, a televisão, os super iates e os aviões executivos, a sociedade que Putin construiu não difere muito da Rússia dos últimos dez séculos. Nem na divisão da riqueza, nem na violência sanguinária do seu estado policial.

Putin, tal como Hitler há 80 anos, acreditou ter chegado o momento de partir à reconquista. Estava convencido de que a Europa democrática não tinha vocação bélica e que era militarmente dependente dos Estados Unidos, numa aliança que afinal Trump mostrou poder ser vazia de conteúdo. Os próprios sistemas políticos europeus estavam profundamente irrigados de movimentos por ele financiados e naturalmente dispostos a mostrar serviço solidário para com a Rússia. A ousadia internacional de Putin tinha acabado de ser recompensada pelas operações de desestabilização em Inglaterra, que levou ao êxito do Brexit e nos Estados Unidos, com a eleição de Trump. Para Putin, o desejo de vingança da sua Rússia humilhada, associado às vitórias pessoais já adquiridas, levaram, tal como tinha acontecido com Hitler, ao êxtase de crer poder gozar de uma liderança iluminada. A Alemanha actual, fruto de uma política de longa data de favorecimento interno dos interesses russos, estava na dependência energética total da Rússia, sendo impensável que se voltasse contra ela. A França, que dizia que ainda sonhava com a grande cultura russa, tinha presente os negócios das empresas francesas, na banca, nos automóveis, na distribuição alimentar e no luxo. Na Itália, os partidos pró-russos já tinham chegado ao Governo, e constituíam um suporte tácito para as aventuras de Putin. Os ventos estavam de feição.

O que correu mal foi a resposta dos Ucranianos que, à semelhança dos Polacos em 1939, mostraram que, não sendo grandes potências, tinham a Honra e um País para defender. A Alemanha e a França não perderam a oportunidade de chamar a atenção dos ucranianos para o realismo de não fazer frente a um exército como o russo, só que, contra todas as expectativas, os ucranianos mostraram que, quando há vontade, nada está decidido por antecipação. E a invasão russa de 24 de Fevereiro, que iria apear o governo de Kiev em três dias e instalar lá um fantoche, fracassou com estrondo. O apoio financeiro e logístico americano, britânico e da União Europeia, foi essencial. Um presidente americano fragilizado e um excêntrico primeiro-ministro britânico não tiveram muitas dúvidas em agir quando a opção era a desonra.

O que a Ucrânia conseguiu nos primeiros 3 meses de guerra foi totalmente inesperado. Face ao gigante exército russo, dirigido burocrática e verticalmente e sem cuidar da motivação dos seus elementos, o exército ucraniano demonstrou o que pode fazer uma força militar mais pequena, mas com estrutura de comando descentralizado e uma fortíssima motivação. Pelo que se vai sabendo, o génio estratégico do exército ucraniano em 2022 teve inspiração organizacional nos generais alemães que subjugaram a França numa operação relâmpago em 1940 e que, já depois do desembarque aliado na Normandia em 1944, ainda travaram o avanço dos tanques americanos para Berlim. Foi o caso de Hermann Balck, general alemão com vitórias reconhecidas na I e na II Guerra Mundiais, falecido em 1982, e que passou os últimos anos da sua vida a dar lições de estratégia e táctica militar ao Departamento de Defesa dos Estados Unidos, ensinamentos que terão sido utilizados pela NATO no treino deste exército ucraniano.

Neste final de Junho, contudo, parecem ter acabado as vitórias de David sobre Golias. O génio militar aprendido de generais alemães não tem utilidade num exército sem soldados experientes e sem munições. As vitórias militares ucranianas arriscam-se hoje a ter chegado ao fim por exaustão de recursos, algo que também poderá vir a acontecer com o exército russo, mas o primeiro a levantar a bandeira branca marca o seu destino. Com o receio da escalada nuclear, o Roosevelt e o Churchill dos nossos dias não se aventuraram a fazer frente ao Hitler de hoje. Ajudar a Ucrânia sim, mas fazer a guerra, não.

A Rússia de Putin pode assim estar na iminência de subjugar a Ucrânia e não há neste momento nada, mas mesmo nada, que garanta que Putin ficará saciado com esta vitória. De que valerá na prática o artigo 5 da NATO quando estiver em causa um arranjo de espaço na Lituânia para melhorar o acesso da Rússia ao enclave de Kaliningrado? O que fará a França com o maior partido de oposição declaradamente pró-Putin? O que fará a Itália onde as eleições do próximo ano podem levar ao poder o putinista Salvini? E, sobretudo, o que acontecerá à NATO com Trump de novo na presidência dos EUA daqui a 2 anos? Para a Europa de hoje, o sangue suor e lágrimas de Churchill já não funciona, pois a preocupação é com o preço da gasolina, o conforto dos cidadãos e a garantia do abastecimento de gás às fábricas que dele necessitam 24 horas por dia.

Putin arrisca-se a ganhar a guerra de destruição de um vizinho com o beneplácito de Macron, de Kissinger e do resto do Ocidente que, optando pela desonra, não vai certamente conseguir a paz.