À medida que continuamos a assistir às trágicas imagens da guerra na Ucrânia em que somos confrontados com a destruição sistemática e absoluta de cidades e ficamos tocados pelo assassínio em massa de civis, sentimo-nos regredir a um tempo que julgávamos enterrado num passado negro. No entanto, em muitos de nós subsiste a ideia de que se trata de uma guerra longínqua, embora com externalidades que acabamos por experimentar, como a presença dos refugiados ou o custo da energia. E não deixa de ser revoltante ouvir, de alguns sectores, referências à injustiça e ao incómodo a que nós, inocentes, estaremos a ser submetidos, só porque os ucranianos, teimosamente, insistem em não se submeter aos russos…

Infelizmente para nós, europeus, esta guerra diz-nos directamente respeito. É uma guerra movida por uma potência que reivindica os seus direitos imperialistas sobre os vizinhos a quem não reconhece cidadania. Nada que não tenha acontecido em contínuo durante toda a História da Humanidade. Nada a que nós, portugueses, não reservemos um espaço de sobressalto na nossa memória colectiva, com a vizinhança por vezes incómoda de quem ainda não resolveu a equação iniciada com D. Afonso Henriques. Basta lembrar o que aconteceu em Madrid em 1939 quando sectores da Falange vitoriosa clamavam pelo caminho de Lisboa. Ou mesmo recentemente quando no seio do partido Vox se ouvem sussurros de idêntica aspiração.

Conquistar, esmagar, dominar os vizinhos mais fracos foi algo com que Hitler galvanizou os seus compatriotas no final dos anos 30, invocando o mesmo tipo de direitos que Putin afirma agora ter sobre a Ucrânia. No seu caminho conquistador, Hitler, contra a opinião inicial dos generais alemães, começa com o Anchluss com a Áustria em Março de 1938, ocupando o país com a cumplicidade de alguns sectores mas com a oposição do legítimo Governo daquele país. Prossegue, depois, com o desmembramento e ocupação da Checoslováquia em Setembro de 1938, acto consentido pela França e pela Inglaterra, as potências europeias que não queriam entrar numa nova guerra mundial. Por fim, procede com a invasão da Polónia a 1 de Setembro de 1939; só que, contrariamente aos checoslovacos que, sentindo-se abandonados, optaram por capitular, a Polónia decidiu resistir e, então, as potências ocidentais não tiveram outra saída senão reagir, levando assim ao desencadear da Segunda Guerra Mundial. Há quem especule que, se a França e a Inglaterra tivessem actuado aquando da invasão da Checoslováquia, teria sido relativamente fácil vencer uma Alemanha cujos meios militares estavam na altura muito aquém da garganta de Hitler. Mas não foi isso que aconteceu e a Alemanha, inebriada pela facilidade da conquista, revelou-se imparável. E nunca é demais relembrar que, se a Alemanha tivesse sido contida em 1938, o mundo poderia ter sido poupado à maior destruição que a Humanidade conheceu até hoje.

Quando, em 2008, Putin invade a ex-República Soviética da Geórgia porque esta mostrava veleidades de se tornar numa democracia ocidental, o mundo, e concretamente a Europa, olharam para o lado. Quando Putin invade a Crimeia em 2014, repete-se o silêncio cúmplice e benevolente. A invasão que se seguiu do sudeste da Ucrânia com a criação das autodenominadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, que mais não eram do que invenções de Putin, levou mesmo o Ocidente a ajoelhar-se em Minsk, tal como Daladier e Chamberlain haviam feito em Munique em 1938. Desta vez coube a Merkel e a Hollande subjugarem-se às necessidades vitais de Putin ao acordarem na partição da Ucrânia. Mas, tal como a Polónia em 1939, a Ucrânia não aceitou que decidissem da sua sorte e a invasão comandada por Putin em Fevereiro de 2022 visava, no fundo, resolver a insubordinação na antiga colónia. As águias Imperiais voltavam a levantar voo com o intuito de restabelecer o respeito não só nos insurrectos ucranianos como na Europa em geral. Mas, como sabemos, não foi este o resultado até agora e a coragem inaudita dos ucranianos e do seu líder Zelensky, apoiados por um Presidente americano que muitos consideravam incapaz de grandes rasgos e por uma Europa dirigida por uma alemã cujas capacidades de liderança surpreenderam tudo e todos, fez a diferença.

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Que o problema de Putin não era apenas com a Ucrânia, os vizinhos bálticos e a Polónia sabiam-no muito bem. Um Putin, chefe vitorioso de guerra, tal como Hitler antes dele, seria imparável e as restantes antigas colónias que se cuidassem. Esta clarividência sobre a natureza espiritual da Grande Rússia vai, no entanto, diminuindo à medida que se caminha para oeste, onde anos de investimento russo em movimentos de esquerda e de direita, através do financiamento de políticos na Alemanha, em França, em Itália e no Reino Unido, abriram janelas de simpatia à missão civilizadora da Igreja Ortodoxa de Moscovo. Putin pensava que avançava para Kiev como em vinha vindimada. Até agora, felizmente, enganou-se, e com isso coloca em risco a sua sobrevivência e o futuro da Federação Russa.

Para entender bem o que se passa, nada melhor do que ouvir alguém que, sendo culto e esclarecido, nasceu e viveu na sombra do Império Russo. É o que me proponho fazer reproduzindo declarações de Radoslaw Sikorski, um ex-ministro polaco. Actual deputado no Parlamento Europeu pelo Partido Popular, Sikorski é um europeísta sem reservas e sem complexos. Provocador, teve a ousadia de exigir, como membro do Governo polaco em Novembro de 2011, e em plena crise do Euro, que a Alemanha liderasse a salvação da Europa que, na altura e sob o olhar passivo de Merkel, caminhava para a implosão. Esta atitude valeu-lhe uma moção de censura no seu país por parte dos nacionalistas (que hoje formam o Governo) que tanto odeiam os russos como os alemães. Felizmente, houve na Alemanha quem o ouvisse, e Draghi teve os apoios necessários para fazer o que foi preciso para salvar o Euro e a Europa.

Vale a pena seguir com atenção a análise que, em Outubro do ano passado, Radoslaw Sikorski fez em Berlim sobre a actual situação e de que cito alguns trechos:

A Alemanha e a Polónia em guerra
Na II Guerra Mundial a Alemanha foi o agressor e a Polónia a vítima. Com o fim da guerra, a Alemanha saiu derrotada e a Polónia, tecnicamente, vencedora. Mas ambas saíram derrotadas porque deixaram de ser Estados soberanos. Só em 1989, com o fim da União Soviética, ganharam os dois países a sua soberania.

 

Os mortos da URSS na II Guerra Mundial
A maior parte dos 20 milhões de mortos que a URSS reivindica ter perdido na II Guerra Mundial não aconteceram na Rússia, mas sim na Ucrânia, Bielorrússia e Polónia.

 

O colapso da URSS
Não foi a Ostpolitik de Willy Brandt que pôs fim à ocupação da Alemanha. Foi Ronald Reagan, Lech Walesa e João Paulo II.

 

Nordstream
A Russia construiu mais capacidade em pipeline do que tinha em gás para entregar.

 

A guerra na Ucrânia é para a Rússia a última guerra colonial
Tal como aconteceu com todas as guerras coloniais, a guerra na Ucrânia estar a passar pelas mesmas etapas: Primeiro, a negação da possibilidade de separação porque a colónia faz parte da Nação. Depois, a indignação, por considerarem os russos que os ucranianos não têm capacidade para organizar um Estado. Segue-se o uso da força, com o intuito de dominar os terroristas. No final, contando os mortos de parte a parte, vem a capitulação, com a justificação de que os colonizados não merecem o sacrifício.

 

O erro catastrófico de Putin
A Rússia tinha a escolha de ser um aliado do Ocidente ou um vassalo da China. Putin já fez a sua escolha.

 

Um Estado vassalo
Quando, recentemente, a Rússia enviou tropas para o Cazaquistão para ajudar a controlar agitação interna, a China deu ordem à Rússia para sair imediatamente do Cazaquistão sob pena de ver canceladas todas as relações económicas. E a Rússia obedeceu.

 

Sobre a possibilidade de ataque nuclear
Quando é tomada uma decisão, são precisos 5/7 dias para instalar as ogivas. O Ocidente tem tecnologia que lhe permite acompanhar a situação. São estes dias que abrem espaço para muita diplomacia. Há, além disso, uma longa linha de comando que tem de obedecer à ordem. O raio de acção de uma explosão nuclear táctica é limitado, e serão precisas muitas explosões para se obter um resultado. Mas os ventos correm para leste e levam a radiação para a Rússia. Por fim, quando as ogivas começarem a ser preparadas, a China irá seguramente intervir.

 

Rússia e a democracia
Em todos os países existe uma parte da população que acredita na democracia e nas liberdades. O problema é que, na Rússia, essa proporção nunca foi significativa.

 

Rússia depois da guerra da Ucrânia.
Vai ser necessário desradicalizar a Rússia. Os programas escolares na Rússia terão de ser alterados. Os animadores da televisão devem ser punidos. Não esquecer que em Nuremberga, Julius Streicher, director do jornal nazi Der Stürmer, apesar de nunca ter assassinado ninguém, foi condenado à morte pelo seu papel de incentivador no assassínio em massa de judeus e dos inimigos dos nazis.”

Não deixa de ser bizarro que, neste momento, a Polónia – que, graças à União Europeia, saiu da pobreza em que se encontrava no seio do império soviético – tenha um Governo que se dedica a um exercício constante de confrontação com Bruxelas e em especial com Berlim. Políticos como Donald Tusk e Radoslaw Sikorski, que protagonizaram a transformação da Polónia num Estado moderno, aguardam que se extinga a febre nacionalista alimentada pelo actual Governo, suportada na ilusão de um passado glorioso. A maioria da Polónia acabará por perceber, inevitavelmente, que os fantasmas dos cavaleiros medievais são de pouca utilidade para o futuro e para a qualidade de vida das populações. Novamente, vale a pena conhecer o pensamento de Sikorski sobre a questão europeia:

“A questão da defesa europeia
A Europa não tem uma atitude séria em relação à sua defesa. Se Putin não é um argumento suficiente para a Europa tratar da sua defesa, nada mais será.

A política de defesa europeia
Quando a Confederação Americana teve de lutar pela independência face aos ingleses, não fundiu as várias milícias de cada Estado, mas optou por criar um exército continental. A Europa não deve fundir os seus exércitos, mas constituir um novo exército europeu.

Os EUA e a Europa
A Europa não pode descansar com a ideia de que, na próxima vez que a Rússia atacar, os EUA responderão de forma tão decisiva como o estão a fazer com a Ucrânia. Com outro Presidente ou complicações da América na Ásia, e a resposta será bem diferente.

A Europa
Ao contrário do que os nacionalistas pensam, a Europa não é uma ameaça. Ao contrário do que a Alemanha pensa, a Europa não é um instrumento. A Europa é a solução.”

A forma como a guerra acabar na Ucrânia irá ditar o que vai ser a Europa nas próximas décadas. Em caso de vitória da Ucrânia, a Europa será uma potência global, onde os cidadãos de Lisboa a Kiev gozarão de liberdade de pensar, circular, trabalhar e eleger os seus dirigentes. Em caso de derrota da Ucrânia, assistiremos à dissolução da unidade europeia, que Putin já iniciou com o apoio que deu ao Brexit. Neste caso, de Lisboa a Vladivostok, poder-se-á ver na televisão Putin a ser recebido com honras imperiais nos Champs Elysées em Paris.

Entretanto, uma saudação à coragem sem limites do povo da Ucrânia. Que luta por si e por nós.