Imagine que nas eleições legislativas de 2019 um partido com mais de 10% dos votos obtinha menos de 2% dos deputados no parlamento, digamos 4 em 230. Poucos aceitariam este resultado. Estamos, e bem, habituados à ideia que a representação democrática está associada a algum grau de proporcionalidade entre votos e mandatos. Porém, os resultados das eleições britânicas ilustram precisamente este caso. O partido liberal democrata (PLD) que poderia desempenhar um importante papel no futuro do Reino Unido — entre a voragem esquerdista nacionalizadora do velho trabalhista Corbyn e a deriva conservadora, inconstante e desonesta de Boris Johnson — teve 11,5% dos votos e apenas 1,7% dos mandatos.

O sistema inglês tem um segundo demérito. Os líderes partidários são candidatos únicos na sua circunscrição eleitoral. Se sofrem derrota em mandatos (não em votos) e não são eleitos não lhes resta senão demitirem-se (o que aconteceu com Jo Swinson líder do PLD).

Na era das redes sociais há um terceiro problema com os círculos uninominais de apuramento. É possível, e Boris Johnson fê-lo com maestria, enviar mensagens diferentes para diferentes eleitores. Assim, as circunscrições que apoiaram a saída do Reino Unido da União Europeia, no referendo, receberam a mensagem “Get Brexit Done”, em variadas versões. Nas em que foi maioritário o voto na permanência na UE, as mensagens centraram-se mais nas promessas de política social (40 novos hospitais, mais apoios públicos, etc.), que só mais tarde se verá como, e se, poderão ser financiados.

Johnson ganhou folgadamente, não só pelo favorecimento do sistema eleitoral britânico ao maior partido, mas também por inaugurar de forma eficaz em solo britânico uma nova forma de fazer política na era digital da pós-verdade, que Trump inaugurou nos EUA. Mensagens simples e diretas, uso das redes sociais com segmentação do eleitorado, algumas mentiras úteis dizendo o que os cidadãos querem ouvir (que é possível um acordo comercial com a UE feito num ano). Algum carisma pessoal e sentido de humor ajudaram. Boris não se leva muito a sério, mas nisso representa bem os seus concidadãos.  Aquilo que é inovador, não é o uso instrumental da mentira em política, o que sempre aconteceu, é a amplificação do seu potencial pela conjugação do maior alcance das redes sociais com a diminuição do poder mediador dos órgãos de comunicação social tradicionais.

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Esta semana fechou-se um período que marcará a história do Reino Unido. Acabou a ambivalência se permaneceria ou não na União Europeia. A vitória de Johnson é a vitória da saída. Este resultado é o culminar de uma década marcada por dois erros históricos. Dois referendos, acordados por dois líderes partidários que ditaram, paulatinamente, o fim das respetivas carreiras políticas.

O primeiro erro colossal foi de Nick Clegg, então líder liberal democrata, em 2010. Depois das eleições legislativas desse ano, e não tendo os conservadores uma maioria absoluta, estes negociaram com os liberais um acordo. Os termos do acordo, incluíram uma cláusula inconcebível para estes. Que ambos os partidos (conservadores e liberais) apoiariam a realização de um referendo sobre a reforma do sistema eleitoral inglês, colocando apenas como possibilidade de reforma do sistema eleitoral a adopção do mais complexo sistema de “Voto Alternativo”. Constava também que cada partido reservaria a sua posição para o referendo. Não admira que o NÃO tenha ganho com dois terços dos votos. Os conservadores apoiaram o não, os trabalhistas que oficialmente tinham apoiado este modelo, abstiveram-se de tomar oficialmente posição, e os liberais democratas que anunciaram o apoio deverão ter tido muitos eleitores seus a votarem NÃO pois este não era o seu modelo eleitoral preferido. Enterrou-se por tempo indeterminado a possibilidade de reforma do sistema eleitoral britânico, quando não teria sido necessário nenhum referendo sobre o assunto.

O outro erro histórico, também associado a um desnecessário referendo, agora em 2016, foi o sobre a permanência ou saída do Reino Unido. Dinamizado por David Cameron, para calar de vez os eurocépticos do seu partido, acabou, isso sim, com a carreira política de Cameron. Colocou o Reino Unido num longo processo de negociações e de indecisões que acabou esta semana. Jeremy Corbyn pagou agora também o preço de uma posição titubeante em relação à Europa, defendendo apenas recentemente a necessidade de um novo referendo sobre a permanência na União Europeia. Só o facto de Corbyn estar muito agarrado ao poder e de querer influenciar a escolha do seu sucessor e a agenda ideológica do partido pode explicar não se ter demitido já.

O passado já lá vai e agora o que interessa é o futuro. Este resultado teve o mérito de clarificar as águas em termos do que se vai seguir. A saída simbólica do Reino Unido da União Europeia a 31 de Janeiro e a entrada num período de transição que pode durar até ao final do ano para negociar e aprovar um acordo de saída. Este primeiro prazo será certamente adiado, à boa maneira europeia, mas  entrámos claramente numa nova fase. Na Europa continental, não é só Macron que está satisfeito com esta clarificação. Todos os que acham que é necessário assumir a nova realidade da UE sem os britânicos também estão. Avance-se pois, capitalize-se o facto de deixar de haver uma força de bloqueio em relação a maior integração europeia, mas que haja a humildade de perceber que algumas críticas do Reino Unido são válidas. Há importantes coisas que têm mesmo de mudar na União Europeia: menos burocracia e menos interferência injustificada na política dos estados membros.