O Bloco de Esquerda (BE) e o CDS-PP apresentaram, respetivamente, propostas de suspensão de liquidação e de revogação da taxa de proteção civil do município de Lisboa. Para além de argumentos políticos, os dois partidos entendem que a taxa é inconstitucional.
A proposta do BE merece destaque pelo seu caráter inovador: até que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre o pedido de fiscalização feito pelo Provedor de Justiça, a Câmara deve avançar com a “suspensão de eficácia” das normas do Regulamento que regula esta matéria. Trocando isto por miúdos: até se ter a certeza se a taxa é ou não inconstitucional, a Câmara deve-se abster de proceder à respetiva liquidação e cobrança. Assim, em caso de decisão de inconstitucionalidade, evitar-se-iam os inconvenientes financeiros inerentes à devolução de quantias indevidamente cobradas, por um lado, e, por outro, garantir-se-ia a igualdade entre contribuintes, uma vez que aqueles mais capacitados tenderão a impugnar judicialmente a taxa enquanto os mais vulneráveis ou com menos recursos tenderão, em regra, a pagar imediatamente.
Estes argumentos invocados pelo BE são profundamente válidos. Sabe-se que está pendente, no Tribunal Constitucional, um pedido de fiscalização da mencionada taxa feito pelo anterior Provedor de Justiça. Tratando-se de fiscalização abstrata (i.e. que não surge no âmbito de um litígio judicial concreto que corre nos tribunais), será apreciado pelo Plenário do Tribunal. Por isso, embora exista já um juízo de inconstitucionalidade de taxa semelhante do município de Gaia, tal precedente, embora relevante, não é decisivo: independentemente de existirem ou não diferenças entre os tributos (como alegaram Fernando Medina e Duarte Cordeiro), essa decisão, proferida em fiscalização concreta, foi votada por apenas cinco dos 13 juízes que compõem o TC. Por outro lado, produz apenas efeitos no caso concreto. Estava em causa a liquidação de uma taxa no valor de 47.262,52 euros. Ou seja, aquela concreta recorrente (uma sociedade comercial) conseguiu, com sucesso, obstar à cobrança de tão elevada quantia. Mas os restantes munícipes colocados na mesmíssima situação contributiva não beneficiam diretamente dos efeitos desta decisão: na ausência de decisão política que revogue a mencionada taxa ou de qualquer outro modo legitime o respetivo não pagamento terão de, necessariamente, impugná-la judicialmente. Ou, em alternativa, aguardar pela eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
O problema está, precisamente, no que sucede entretanto: se a taxa for paga ela terá de ser devolvida caso venha a ser declarada inconstitucional? Não necessariamente. Uma decisão de inconstitucionalidade tem efeitos brutais óbvios no ordenamento jurídico: a eliminação das normas que são inválidas. Em Portugal, em regra, estes efeitos produzem-se a partir do momento em que a norma que foi declarada inconstitucional entrou em vigor. Neste caso concreto de Lisboa, e existindo decisão no sentido da inconstitucionalidade, tem razão o BE quando receia os efeitos nefastos que podem advir da necessidade de reembolsar largas quantias. Imagine-se o enorme impacto financeiro no orçamento municipal se, no caso de decisão de inconstitucionalidade, os efeitos da decisão retroagissem à data em que a taxa começou a ser cobrada (2015).
No entanto, em certos casos, a Constituição permite que o Tribunal Constitucional, sempre que a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excecional relevo, o exigirem, possa fixar outros efeitos à declaração de inconstitucionalidade. Esta possibilidade tem sido largamente utilizada para determinar que os efeitos da inconstitucionalidade se produzam apenas a partir da data em que a decisão é proferida ou publicada. No caso da suspensão parcial ou total dos subsídios de férias e de Natal, o Tribunal chegou mesmo a manter em vigor durante todo o ano em que foi proferida a decisão (2012) os efeitos das normas declaradas inconstitucionais, anulando, na prática, os efeitos orçamentais da decisão de inconstitucionalidade.
Caso o Tribunal Constitucional, perante uma eventual declaração de inconstitucionalidade da taxa municipal de proteção civil de Lisboa, viesse a restringir os efeitos da sua decisão, daí poderia resultar, portanto, o grave inconveniente de termos dois grupos de contribuintes afetados de modo desigual: os que optaram pela impugnação judicial da taxa muito provavelmente seriam exonerados do seu pagamento; já aqueles que procederam ao seu pagamento ver-se-iam numa situação mais desvantajosa, correndo sérios riscos de nunca virem a recuperar as quantias pagas.
Por este exemplo concreto é fácil perceber que a função de controlo da constitucionalidade levada a cabo pelo Tribunal Constitucional tem de ser levada a sério pelos diversos agentes políticos. Existindo dúvidas acerca da constitucionalidade de normas que, naturalmente, continuam a ser aplicadas pela Administração, pelos particulares, pelas empresas e pelos tribunais, gera-se uma tensão latente que deve convocar, de todos os operadores, uma razoável dose de bom senso: por parte da Administração, exige-se a atenção e antecipação necessárias de modo a evitar inconvenientes como aqueles que o BE agora aponta; às entidades com legitimidade para deduzir pedidos de fiscalização abstrata (Presidente da República, Provedora de Justiça, Procuradora-Geral da República), a atenção e zelo necessários na formulação de pedidos, de modo a evitar que normas potencialmente inconstitucionais se mantenham em vigor por largos períodos de tempo; e, por fim, ao Tribunal Constitucional pede-se a celeridade necessária nas suas decisões de modo a pôr termo a situações de indefinição quanto à constitucionalidade das normas questionadas.
Teresa Violante é constitucionalista e investigadora da Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt