1. Políticas monetárias agressivas

Num célebre discurso em Novembro de 2002, numa sessão de homenagem a Milton Friedman, o então governador da Fed, Ben Bernanke, reconheceu que políticas monetárias restritivas do banco central norte-americano foram responsáveis pelo agravar da Grande Depressão dos anos 30 do século XX. Bernanke acabaria o discurso com uma eloquente declaração, que se revelaria premonitória:

Milton [Friedman] e Anna [Schwartz]: sobre a Grande Depressão, tinham razão, a culpa foi nossa. Lamentamos imenso, mas, graças a vocês, aprendemos a lição.

E assim foi. Reagindo à crise financeira internacional de 2007-08, a Fed norte-americana e o Banco de Inglaterra cumpriram o prometido por Bernanke com políticas monetárias ultra-expansionistas, convencionais, levando as taxas de juro de referência quase a zero, e, também, não-convencionais. Por sua vez, o Banco Central Europeu (BCE) fez o oposto, tendo até aumentado as taxas de juro de referência, quando já se faziam sentir os efeitos da crise, uma decisão que, com certeza, irá fazer parte dos anais dos disparates da política monetária. Na verdade, só em meados de 2012, quando o seu presidente, Mario Draghi, anunciou que faria tudo para salvar o Euro, é que inverteu decisivamente o rumo.

E em que consistem as políticas monetárias não-convencionais? Com a política monetária convencional, um banco central actua junto dos bancos comerciais cedendo ou retirando liquidez com o objectivo de atingir uma determinada taxa de juro de referência, na esperança de que esse efeito se estenda às outras taxas de juro existentes na economia e que estão directamente ligadas às decisões de investimento e de consumo. Quando, por algum motivo, este mecanismo de transmissão falha, a política monetária convencional torna-se ineficaz. É nesse momento que se abrem as portas a políticas não convencionais, o Quantitative Easing na gíria anglo-saxónica. A premissa é simples, se baixar as taxas de juro referência não é possível ou não é suficiente para baixar as outras taxas de juro na economia, então intervém-se directamente comprando títulos associados a esses outros mercados. Podemos estar a falar de dívida pública (quer de curto quer de longo prazo), mas também privada, ou até de outros activos financeiros. Por outras palavras, inunda-se os bancos com liquidez na esperança de que estes o emprestem a particulares e empresas o que, por sua vez, estimulará a economia.

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2. O falhanço dessas políticas

Como se tem visto, as taxas de juro estão baixíssimas (Portugal agradece), mas as economias europeias continuam sem descolar. Ou seja, esta política não está a ter os resultados desejados. Muito menos parece servir de grande estímulo à procura: com a taxa de inflação próxima de zero, a possibilidade de entrarmos em deflação é bem real. Ou seja, o dinheiro é injectado nos bancos, mas, por alguma razão, não chega ao resto economia. Esta ausência de efeitos apanhou muita gente de surpresa, apesar de já ter acontecido algo similar no Japão. Na verdade, quando estas políticas foram propostas, foram muitos (incluindo reputados economistas de diversas escolas de pensamento) os que alertarem para o perigos de a inflação disparar. Ou seja, arriscávamo-nos a passar de uma taxa de inflação próxima de zero para uma situação de hiperinflação. Como hoje é claro, tais receios eram infundados.

Mas a questão mantém-se: como é que é possível injectar tanto dinheiro na economia, multiplicando algumas vezes a base monetária, sem qualquer impacto relevante nos preços? Afinal todos os economistas sabem, ou julgam saber, que aumentando a quantidade de moeda, os preços aumentam. Na verdade, um aspecto que poucas vezes é referido é que esta relação proporcional entre preços e base monetária só é verdade quando o aumento da base monetária é permanente e é acompanhado por um aumento da massa monetária em sentido mais lato (ou seja, incluindo activos financeiros bastante líquidos, como os depósitos a prazo). Ora não só o aumento da massa monetária em sentido lato tem sido mais mitigado como o compromisso dos Bancos Centrais é a de que esta expansão monetária é temporária, ou seja, que quando a situação económica normalizar, o dinheiro que entretanto foi injectado será retirado. Neste cenário, não é claro que a injecção monetária estimule a economia. É quase como se o Estado quisesse estimular a economia descendo os impostos (ou mandando cheques por correio a toda a gente) ao mesmo tempo que promete que no futuro aumentará os impostos para compensar os défices actuais. Naturalmente, se as pessoas forem previdentes e pouparem o cheque, o impacto de tal medida na economia seria nulo.

3. Helicopter Money?

Sendo assim, quais os passos seguintes? Num outro discurso de Ben Bernanke, também em Novembro de 2002, podemos encontrar algumas pistas. E está ligada a uma proposta de Friedman, conhecida como Helicopter Money. Bernanke defende que uma forma de estimular a economia é através de uma redução de impostos financiada com emissão de dívida pública comprada directamente pelo Banco Central, com o compromisso de que o governo nunca terá de a amortizar. Na prática, é como se o Banco Central imprimisse notas e as entregasse ao governo para distribuir. Com toda a probabilidade, as pessoas iriam gastar parte desse dinheiro, estimulando a procura e causando alguma inflação. Por outro lado, se as pessoas preferirem guardar o dinheiro em vez de o gastar, o impacto inflacionista será nulo. Mas, mesmo nesta situação, as pessoas teriam sempre o conforto psicológico de se sentirem mais ricas ou de saldarem algumas das suas dívidas. De acordo com Bernanke, uma proposta destas equivaleria à proposta de Friedman (já lá vamos).

Parece impensável que uma política destas seja seguida na Europa. Isso equivaleria a que o BCE financiasse directamente os governos nacionais, o que vai contra as regras dos tratados europeus, estimulando o comportamento irresponsável de muitos governos. E, convenhamos, estes governos já demonstraram em diversas ocasiões de que não precisam de estímulos extra para serem irresponsáveis. No entanto, Mario Draghi, em Setembro de 2015, respondendo a perguntas no Parlamento Europeu, não descartou esta hipótese, quando questionado sobre a hipótese de o BCE financiar directamente o plano Juncker.

4. Dinheiro para o povo?

Na verdade, no seu célebre artigo de 1969, Milton Friedman descreve assim o processo:

Vamos agora imaginar que um dia um helicóptero sobrevoa uma comunidade e deixa cair mil dólares. Os membros dessa comunidade correrão para recolher esse dinheiro. Admitamos ainda que a população não acredita que o mesmo volte a acontecer.

Não sendo viável (nem desejável) entregar dinheiro aos governos ou à Comissão Europeia, para ser redistribuído — até porque, muito provavelmente, seria capturado pelos grupos de interesse mais activos —, faz mais sentido ler a proposta de Friedman não como uma metáfora, mas sim literalmente. Desta forma enfatiza-se a independência do Banco Central das políticas orçamentais dos governos nacionais.

Como poderia o BCE distribuir dinheiro desta forma pelos cidadãos europeus? John Muellbauer, professor em Oxford, propôs que se entregasse 500€ a cada pessoa que tivesse número de contribuinte ou que se recorresse aos cadernos eleitorais. Isto, claro, com a garantia de não o pedir de volta. Ou seja, tratar-se-ia de uma dádiva e não um empréstimo, pelo que corresponderia a um aumento permanente da moeda em circulação.

Juridicamente, parece difícil implementar uma medida destas, no entanto, se houver vontade, não será impossível.

5. Não há milagres

Não é por se imprimir notas que a economia funciona melhor. Adicionalmente, há o imenso perigo de a moeda perder a sua credibilidade e com isso a sua utilidade. Além disso, políticas monetárias apenas têm efeito no curto prazo, e tudo indica, pelo menos assim penso, que os problemas do mundo ocidental não são conjunturais, mas sim estruturais.

De qualquer forma, as políticas monetárias actuais já são arriscadas, com potenciais perigos de que pouco se fala. Por exemplo, as distorções nos mercados financeiros são perigosas, com as cotações dos activos financeiros a subirem artificialmente, beneficiando os seus detentores, e baixando as taxas de juro, prejudicando os aforradores tradicionais que vêem a remuneração das suas poupanças a ficar ridiculamente baixas e promovendo comportamentos arriscados na busca de mais elevadas rentabilidades.

Se se chegar ao ponto de se mandar imprimir dinheiro para distribuir, prefiro que seja um helicóptero a reparti-lo por todos em vez de ser entregue aos governos ou a Juncker para o distribuir por interesses seleccionados. Apesar de tudo, é mais justo e menos arriscado.