Foi recentemente aprovada na Assembleia da República a legalização da chamada “gestação de substituição” (também conhecida por “maternidade de substituição”, ou, mais popularmente, por “barrigas de aluguer”). A lei aprovada (Lei n.º 90/2021, de 16 de dezembro) pretende responder ao juízo de inconstitucionalidade de uma lei anterior emitido pelo Tribunal Constitucional, designadamente no que se refere à possibilidade de arrependimento, logo a seguir ao parto, da parte da mãe gestante.

Independentemente das questões de eventual inconstitucionalidade suscitadas pelo Tribunal Constitucional, uma coisa parece certa: a legalização da “gestação de substituição” não motiva, entre nós, uma discussão aprofundada como a que se verifica noutros países. As críticas que mais se têm feito ouvir nesses países nem partem de ambientes católicos ou conservadores, mas de setores feministas, que nessa prática veem uma forma de exploração das mulheres mais vulneráveis. Entre nós, a aprovação da lei por uma Assembleia da República à beira da dissolução quase passou despercebida.

É notória a crescente sensibilidade das sociedades contemporâneas perante as agressões à ecologia física ou ambiental. Foi isso mesmo que se notou aquando da recente cimeira de Glasgow. Há, porém, uma dimensão da ecologia, a ecologia humana, que não tem recebido uma atenção sequer comparável a essa. E quando penso em atentados à ecologia humana, vem-me logo à mente o da “gestação de substituição”.

A ecologia humana assenta numa ordem e harmonia naturais a respeitar também no âmbito da sexualidade e do início e fim da vida humana.

Afirmou, a este respeito, Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate (n. 51): «O livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a vertente da vida, da sexualidade, do matrimónio, da família, das relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento humano integral.» E Francisco na encíclica Laudato Si` (n. 155): «A ecologia humana implica também algo de muito profundo que é indispensável para se poder criar um ambiente mais dignificante: a relação necessária da vida do ser humano com a lei moral inscrita na sua própria natureza. Bento XVI dizia que existe uma “ecologia do homem”, porque “também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece”.»

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Durante a pandemia, o mundo assistiu a um episódio que evidenciou a desumanidade desta prática. Um vídeo retratou um grupo de várias dezenas de crianças recém-nascidas nos seus berços, fruto de “gestação de substituição”, na Ucrânia, aguardar quem as viesse buscar para delas cuidar como progenitores. Estes estavam impedidos de o fazer devido ao confinamento. Mas a desumanidade maior era a de que essas crianças estavam impedidas de contactos com as mães gestantes (e estavam, por isso, em grandes salas que mais pareciam armazéns de produtos), por exigência dos contratos de “gestação de substituição”, para impedir a consolidação dos laços afetivos próprios da maternidade.

É verdade que a lei portuguesa recentemente aprovada não permite a exploração comercial desta prática. Mas os seus malefícios não desaparecem com a sua gratuidade (que também pode ser subvertida através do pagamento de despesas encapotadas). A instrumentalização da mãe gestante e da criança, assim como os traumas decorrentes do abandono, não deixam de existir, mesmo sem a exploração comercial.

A “mãe de substituição” sofre graves danos porque uma qualquer mulher não fica indiferente ao que lhe acontece quando está grávida. Este estado não é uma atividade como qualquer outra; transforma a vida da mulher fisica, psicologica e moralmente. Esta não pode deixar de viver a gravidez como sua e de sofrer com o abandono do filho. É, por isso, compreensível que venha a arrepender-se ou que, mais tarde, queira ter o direito de visitar o seu filho (e o que lhe responder, então, quando a lei lhe nega esse direito?). O útero é inseparável do corpo e da pessoa, não é um alojamento temporário, ou um instrumento técnico. A mulher grávida não é uma máquina incubadoura. Entre a mãe gestante e a criança nascem laços de vinculação estreitíssimos que, por imposição de um contrato, são quebrados violenta e abruptamente à nascença, tornando obrigatório para a mulher gestante (a mãe) o abandono do seu filho e a renúncia à mais espontânea, instintiva e natural tendência que é a de continuar a cuidar da vida de que cuidou durante nove meses. Para evitar essa quebra e essa violência, a mulher pode tentar evitar essa vinculação no plano psíquico, o que será igualmente danoso, para ela e para a criança.

Por isso, muitos consideram que só o desespero de mulheres que não encontram meios que lhes garantam uma subsistência digna as leva a aceitar esta prática. Não é por acaso que ela tem ocorrido em larga escala em países como a Índia e a Tailândia (países que, entretanto, a vêm restringido) e a Ucrânia. É notório o contraste entre os requerentes, em geral de países ricos, e as mulheres gestantes, muito pobres.

Invoca-se, em favor da legalização da “gestação de substituição” gratuita e não comercial, que ela representa uma forma de altruísmo de uma mulher que voluntariamente aceita tais sacrifícios em prol da felicidade de outros (que podem até ser seus familiares).

A investigação empírica vem demonstrando que, quase sempre, só situações de grande carência económica (não o altruísmo) levem mulheres a sujeitar-se a tão traumatizante experiência. A “compensação de despesas” acaba por ter efeitos idênticos aos do pagamento. E será sempre difícil o controlo judicial de compensações indiretas ou não monetárias.

Quando a “mãe de substituição” é avó ou tia da criança, gera-se o chamado “curto-circuito” geracional, a coexistência de duas mães, sendo uma também avó (avó e mãe) ou tia (tia e mãe), com os riscos e problemas que daí possam surgir.

Mas mesmo que a postura da “mãe de substituição” seja de genuíno altruísmo, não podem esquecer-se os danos causados à criança.

Cada vez se conhece melhor os intercâmbios entre a mãe gestante e o feto e a importância desse intercâmbio para o salutar desenvolvimento físico, psicológico e afetivo deste. Esse intercâmbio ajuda a construir a própria identidade da criança. Esta não poderá experimentar a segurança de reconhecer, depois do nascimento, o corpo onde habitou durante vários meses. Esta experiência traumática fere a criança, como sucede em qualquer situação de abandono. Há quem afirme, a este respeito, que a criança sofre a “morte psíquica” da mãe.

Dir-se-á que tudo isto já sucede quando uma criança é abandonada ou “dada” para adoção. Mas essa é uma situação que não pode ser evitada (se tal fosse possível, seria evitada). Aqui, estamos perante um abandono deliberadamente programado, institucionalizado por um contrato e pela lei, que vedam a obrigação mais natural que existe: a de assumir a vida que se gerou.

Eis porque me parece que a “gestação de substituição”, recentemente legalizada em Portugal numa quase geral indiferença, é frontalmente contrária à ecologia humana: porque contraria a natural harmonia (a ecologia) própria da procriação, da gestação, da maternidade, da paternidade e da família.