Aproximava-se o momento da votação final de um projeto de lei do PAN que prevê que titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos declarem a sua pertença a organizações ou associações qualificadas como “discretas”, no sentido em que «exijam dos seus aderentes a prestação de promessas de fidelidade, ou que, pelo seu secretismo, não assegurem a plena transparência sobre a participação dos seus associados». Na exposição de motivos desse projeto, afirma-se claramente que nesse tipo de organizações “discretas” se incluem a Maçonaria e o Opus Dei. Entretanto, o PSD anunciou a apresentação de um outro projeto que torna obrigatória (e já não facultativa, como no projeto do PAN), para esses mesmos titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos, a declaração de pertença a qualquer organização ou associação, seja qual for o seu fim (e já não apenas as tidas por “discretas”). Por esse motivo, será intenção dos deputados adiar a votação do projeto de lei do PAN e alargar a discussão ao conjunto dos dois projetos.

Importa salientar, a este respeito, o que a propósito afirmou a Comissão da Liberdade Religiosa no parecer que enviou à Assembleia da República solicitado no contexto da discussão na especialidade do projeto de lei do PAN. Na verdade, o âmbito dos dois projetos, pela sua generalidade, pode abranger associações ou organizações de qualquer confissão religiosa (e o do PAN pretende, mesmo, abranger especialmente uma organização católica).

Basicamente, tal parecer da Comissão da Liberdade Religiosa afirma que a previsão da referida declaração (ainda que facultativa) é contrária às normas constitucionais de garantia da liberdade religiosa. Contraria diretamente o artigo 41.º, n.º 3, da Constituição que estatui. «Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder».

Não é certamente por acaso que a Constituição consagra este “direito à reserva pessoal das convicções religiosas”, ou esta “garantia especial da liberdade religiosa”.

As convicções religiosas integram-se no foro de maior intimidade pessoal (neste aspeto, podem equiparar-se aos dados pessoais relativos à saúde). O autor destas linhas não se recorda de alguma vez ter deliberadamente ocultado as suas convicções religiosas e o seu empenho em várias organizações católicas (nelas não se incluindo o Opus Dei, a que o liga a amizade para com vários dos seus membros). Nem pensa algum dia vir a fazê-lo. No entanto, respeita, como penso que todos deverão respeitar, quem assim não queira proceder e que tem no referido artigo 41.º, n.º 3, da Constituição o respaldo para tal atitude.

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É verdade que vivemos num país livre e democrático que respeita a liberdade religiosa e onde não são de esperar perseguições ou discriminações em função das convicções ou prática religiosas. Mas sabemos que não é assim em todo o mundo. Já tive ocasião de conhecer pessoas aderentes a organizações católicas a que pertenço levadas a, compreensivelmente, ocultar essa sua pertença para não sofrerem vários tipos de perseguição (até em países europeus). E também sabemos que, em Portugal, nem sempre foi assim no passado, também quanto à maioria católica, mas, sobretudo e claramente, quanto às minorias não católicas.

Num Estado de Direito, o legislador não deve confiar na bondade dos detentores de qualquer poder, mas prever sempre a possibilidade de estes abusarem desse poder (deve prever sempre a “pior das hipóteses” no exercício de qualquer poder, não a melhor). É isso mesmo que justifica as garantias de tutela dos direitos humanos fundamentais, como a do citado artigo 41.º, n.º 3, da Constituição no que à liberdade religiosa se refere.

Também não é por acaso, e é por estes mesmos motivos, que as normas de proteção de dados pessoais qualificam os dados relativos às convicções religiosas como “dados sensíveis”, equiparando-os aos dados relativos à saúde.

Dir-se-á que quem se candidata a cargos políticos, ou exerce altos cargos públicos, assume, por isso, um ónus de maior transparência quanto à sua situação pessoal (assim sucede quanto à esfera patrimonial) que é diferente da dos outros cidadãos. Mas essas pessoas, seja qual for o cargo que ocupam ou pretendem ocupar, não podem ser, por isso, privadas de direitos fundamentais como o da liberdade religiosa. Obviamente, o citado artigo 41.º, n.º 3, não exclui do seu âmbito de aplicação (nem seria justificado que o fizesse) os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos.

De resto, como salienta o aludido parecer da Comissão da Liberdade Religiosa, a opção de um político pela omissão de declaração pública das suas convicções religiosas pode ser motivada por um entendimento rígido da laicidade do Estado. Um entendimento que eu não partilho, de modo algum, mas que também devo respeitar.

Afirma, ainda, esse parecer da Comissão da Liberdade Religiosa que o projeto de lei do PAN recorre a conceitos de tal modo indeterminados que abrem a porta ao arbítrio, não satisfazendo minimamente as exigências de certeza jurídica próprias de uma lei que limita direitos fundamentais. O recente acórdão do Tribunal Constitucional sobre a lei que aprova a eutanásia e o suicídio assistido veio alertar para isso mesmo, para uma acrescida exigência de certeza e previsibilidade das leis que limitam ou envolvem direitos fundamentais.

Na verdade, o que poderá significar que uma organização ou associação é “discreta”? É difícil conceber um conceito tão indeterminado como este.

Não é mais precisa e certa a explicitação desse conceito como as organizações ou associações que «exijam dos seus aderentes a prestação de promessas de fidelidade, ou que, pelo seu secretismo, não assegurem a plena transparência sobre a participação dos seus associados»

Haverá alguma organização ou associação que não solicite, de uma ou de outra forma, dos seus membros a observância de deveres de fidelidade aos seus fins e objetivos? Fá-lo qualquer empresa, como o faz, obviamente, qualquer partido político.

Quanto à exigência de «plena transparência sobre a participação dos seus associados», é evidente que uma organização ou associação religiosa só poderá divulgar a terceiros a identidade dos seus membros se estes nisso consentiram. É o que impõe, além do mais, o referido artigo 41.º, n.º 3, da Constituição. E o que impõem também as normas vigentes sobre proteção de dados pessoais, que parecem ter sido ignoradas pelo projeto de lei em causa.

Provavelmente, nenhuma associação ou organização se incluirá a si própria na categoria de “discretas” a que se refere o projeto de lei do PAN. Mas a explicitação do conceito nos termos indicados (com a referência à fidelidade e à publicidade da identidade dos seus membros) parece permitir a inclusão de praticamente todas. Em suma, nela pode ser incluída qualquer associação ou organização; tudo dependerá do intérprete da lei. Está, assim, aberta a porta ao arbítrio…

Mas a exposição de motivos do projeto de lei do PAN é explícita quanto a duas organizações que pretende atingir: a Maçonaria e o Opus Dei. Como também salienta o parecer da Comissão da Liberdade Religiosa, esta referência indicia que não estaremos perante uma verdadeira lei com as suas características de generalidade e abstração (estas são apenas aparentes), mas perante uma medida política dirigida a duas organizações determinadas. Ora, também este aspeto do projeto é inadmissível à luz das normas e princípios constitucionais sobre limitação dos direitos fundamentais.

Quanto a essa referência a essas duas organizações, parece-me de salientar o seguinte.

Está subjacente a essa referência, uma suspeição de menor idoneidade ou imparcialidade de quem possa pertencer a essas organizações. Não se baseia tal suspeição em dados objetivos ou nalguma condenação judicial. Como já alguém afirmou a propósito, baseia-se em especulações de “conversas de café”, que não servem para fundamentar algo de tão grave como uma qualquer medida legislativa, e, ainda mais, uma limitação de direitos fundamentais.

Quanto ao Opus Dei, os autores do projeto parecem desconhecer o seu estatuto canónico, que, no que se refere às questões em apreço, não se distingue essencialmente de outras associações ou organizações católicas.

Por outro lado, a credibilidade da especulação sobre a sua influência na política portuguesa, foi de há muito desfeita, desde logo pelo facto de, nas últimas décadas, haver um único político de relevo entre os seus membros (João Bosco Mota Amaral).

Quanto à Maçonaria, com cujo ideário não me identifico, e apesar de me causar alguma perplexidade o número muito elevado de políticos portugueses que aderem a várias das suas correntes, há que considerar o seguinte.

A adesão a organizações que perfilhem uma determinada mundividência filosófica pode, até certo ponto, equiparar-se à adesão a uma organização religiosa (essa equiparação verifica-se, por exemplo, no artigo 17.º do Tratado da União Europeia), no que à questão que nos ocupa se refere.

Por outro lado, não me parece justo, a qualquer título, lançar sobre qualquer membro da Maçonaria, só pelo facto de o ser, uma suspeição de menor idoneidade ou imparcialidade.

Em conclusão, parecem-me contrários às exigências de proteção da liberdade religiosa os projetos de lei em discussão, do PAN e do PSD, que pretendem ampliar as obrigações declarativas dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos.