1 Ele sabe. Sabe até mesmo desde o seu primeiro mandato presidencial. Sabe como entre a perplexidade e a veemência discordei de muitos andamentos da sua década não prodigiosa. Mas também sabe o que fizemos, um e outro – acho eu… – para que a nossa amizade tão antiga, não se despenhasse nos socalcos dessa passagem por Belém. (Tão antiga amizade de facto, que recordo a nossa diária convivência no Expresso, sempre aliás muito mais que profissional ,como algo que tivesse ocorrido no período paleolítico e aí sim, aí é que éramos felizes .(Que ideia Marcelo essa de uma “felicidade “repartida com António Costa, como se fosse preciso erguer um biombo entre uma adolescêntica nostalgia sobre felicidades improdutivas e o que vigora hoje no país, que talvez te confunda ou não…sei).
2 O certo é que tendo obviamente apreciado alguns passos, tomando nota de certos gestos, e retendo meia dúzia de discursos do actual Presidente, eu discordava, mais que outra coisa. E a diferença é que, desde o princípio, nunca o escondi. Antecipando dúvidas, sinalizei-as até num texto publicado aqui mesmo no Observador, oito dias antes da sua tomada de posse, um escrito que já acarretava com ele o peso de alguma reticência. O texto caiu o pior possível, fui interpelada directamente – “mas como é que eu ousava, será que preferia a eleição de Sampaio da Nóvoa” ou de mais não sei quem?
Desde amigos a intelectuais de esquerda e ex-intelectuais de esquerda, passando pelos “dinners en ville” onde Marcelo Rebelo de Sousa era o enaltecido e mimado Presidente e eu a desastrosa desmancha prazeres naquele gáudio de virtude, houve de tudo. Um gáudio onde todos, elites, país, povo, se embebiam.
Sucede porém que não é de todo isso que me traz. É o contrário.
3 Acho que seria incapaz de me ter zangado com Marcelo Rebelo de Sousa, ou de preferir deixar de o ver ou sequer de escolher distanciar-me dele. Conheço-o bem de mais para isso, vivi algumas coisas – das que marcam – com ele ou junto dele, colaboramos ambos lado a lado em iniciativas da Igreja; são absolutamente incontáveis as vezes que estivemos, jantámos, almoçámos, discutimos, rimos, os dois ou com amigos comuns, quase sempre os mesmos, que é como deve ser. E sabe Deus o que isto conta em épocas de balanço ou fora delas, conta sempre. Sei de cor a sua imensa generosidade e de como ele se interessa de facto por quem lhe bate à porta, esta só, ou em sofrimento, ou morre. Testemunhei de perto o seu sentido de família e a importância que ela tinha para ele, o pai que foi, o avô que é. Defendi-o publicamente quanto pude no caso das duas crianças brasileiras doentes. E nunca esquecerei que lhe devo comovidamente uma intervenção – tão brilhante quanto atenta ao que tenho andado a fazer no jornalismo há mais de meio século – feita no lançamento de um dos meus livros, “As Sete Estações da Democracia”. Foi no dia 24 de Novembro de 2021, num dos palcos da Gulbenkian, vivia-se a pandemia mas ele esteve lá. Guardo as suas palavras como um cúmulo de generosidade que a minha discordância não chegou a contaminar. Notável generosidade.
Não, isto não é uma lenga-lenga, é simplesmente, num resumo abreviadíssimo, fazer a parte das coisas.
Sei o que Marcelo é capaz de fazer e o que ele não é – foi – capaz de fazer e não confundo os planos. Ou não me permito confundi-los. Ou não quero. A vida continua.
4 Espanta-me agora que tantos e tantas dos que há oito anos me invectivavam e me asseguravam que “não era bem assim e que eu exagerava”, exagerem eles agora.
Saindo a terreiro com virulência após anos de inútil condescendência, distribuída gratuitamente a torto e a direito. Sem audível discordância quando algumas coisas exigiam publica discordância. E nem ao menos salvaguardando a dignidade do cargo como merece a Presidência da República.
Lembro de que me arengavam quando sublinhava o que me parecia ser o excesso de cumplicidade com as governações de António Costa; ou me indignava que o centro- direita fosse uma espécie de sem abrigo sem sombra de representação no verbo ou no gesto presidencial; me surpreendia com a mudez de Belém face a alguns crassos erros socialistas; ou quando a autoridade do mais alto magistrado da nação parecia ausente de alguns propósito e algumas intenção. Por exemplo.
Espanto-me hoje e não é pouco. Há oito anos, quando o Presidente da República infantilizava a plateia do país com o tique das selfies; há sete, quando continuava a menorizar o país pelo qual velava com o seu entendimento de “proximidade”; há seis, quando em vez de mobilizar os portugueses para o destino de Portugal, lhes dizia que eles eram os melhores (?), teriam talvez, quem sabe, valido a pena chamadas de atenção da parte de elites responsáveis. Avisos sérios – graves e circunspectos – e não à sobremesa de um jantar íntimo em Belém.
Agora quando subitamente e já quase fora de horas o coro dos desiludidos (desiquê?) aumenta de voz no “não-aplauso”, eu que aplaudi bem menos que eles, lembro o Marcelo brilhante intelectual, académico de excepção, inspirado director de jornais, cidadão interessante, interessado, culto, curioso. Vertiginoso na inteligência, poderoso na memória, perigoso na intriga, delicioso no humor. Curioso no contar das historias que nos diz saber e ter vivido, mesmo que não saiba tudo e só tenha vivido em parte.
Eu sei que falta tempo, mas era-me preciso fazer hoje a parte das coisas. Destas. Posso ter perdido um presidente, não perdi um amigo.
5 Ocorreu-me tudo isto mais de uma vez, desta feita há dias, a ouvir Marcelo a falar de cima de um palco. Foi na apresentação do novo livro de Eduardo Marçal Grilo – ex-ministro da Educação. O nome da obra é comprido – “Educação e Liberdade – A primavera de Veiga Simão, os desmandos do PREC e a renovação de Sotto Mayor Cardia” (Clube do Autor) –, o livro é obrigatório. O autor volta aqui a revisitar a Educação noutras eras e épocas através de alguns protagonistas da área educativa (já o fizera num volume anterior, igualmente muito interessante, “Salazar e a Educação no Estado Novo”, olhando e discorrendo sobre alguns ministros da Educação do anterior regime).
Desta feita entra por 1974 e não encontro aliás melhor definição deste segundo volume do que a escolhida por Jaime Gama, autor do prefácio: o livro “é uma fusão entre diário, memória, história e reflexão que não deixará indiferente os leitores motivados”. É exactamente isso mas era preciso saber fazê-lo e Eduardo Marçal Grilo soube. Prenderá até os porventura menos “motivados”.
Motivadíssimo estava Marcelo Rebelo de Sousa quando subiu ao palco, após a apresentação do livro (feita por Guilherme Oliveira Martins, particularmente inspirado, e por David Justino) e voltemos a Marcelo. E ao brilho da sua própria desenvoltura assente na memória e no conhecimento da História e das histórias; a argúcia da observação dos personagens que mobilam o livro, o fulgor de uma invulgar inteligência. Em certo sentido o seu “modo” oratório talvez seja de facto insuperável quando olha para a nossa a História, mais recente ou mais recuada e nos leva pela mão nessa viagem. Voltou a acontecer.
E eu , diante daquela performance (não há outro termo), voltei a pensar que devia, de uma vez por todas, fazer a parte das coisas. Ficou feita acima.
PS. Tenho um particular gosto em dar esta boa notícia: vai ser finalmente aprovado o novo estatuto da carreira diplomática após vinte e oito anos regidos pela anterior legislação. Eu conhecia esta velha e persistente aspiração da nossa diplomacia em poder vir a contar com um estatuto mais actualizado e mais conforme ao seu papel no mundo de hoje. Viajei muito em trabalho por vários continentes e em todos fui sempre amparada pelo acolhimento, o saber, o profissionalismo, a delicadeza dos embaixadores portugueses nos lugares – alguns tão longínquos como Buenos Aires, ou Moscovo, ou Maputo, ou Nova Dheli, por exemplo – onde trabalhei. A história do quase imutável estatuto vinha por vezes à tona das conversas ao serão. Não virá mais, ao fim de três décadas há um novo estatuto. O ministro dos Negócios Estrangeiros deve estar feliz, e eu daqui envio os meus parabéns ao Ministério e a quem na “casa” levou esta água ao moinho.