1 Retomo hoje, muito intencionalmente, o título da coluna que escrevi aqui a 8 de Julho pp., logo após a vitória eleitoral do Partido Trabalhista de Sir Keir Starmer nas eleições britânicas de 4 de Julho. Recordo esse título: “Eleições inglesas: afinal, o ‘sistema’ funciona”.
É muito intencionalmente que aplico o mesmo título à vitória eleitoral do sr. Donald Trump e do seu Partido Republicano nas eleições americanas da passada terça-feira, 5 de Novembro: “Eleições nos EUA: Afinal, o ‘sistema’ funciona”.
A legitima pergunta é bem-vinda: Como pode o mesmo autor saudar simultaneamente a vitória eleitoral de um Partido da chamada “esquerda” (no caso britânico) e de um Partido da chamada “direita” (no caso americano)?
2 Agradeço a pergunta porque é exactamente essa aparente contradição que desejo sublinhar.
A democracia liberal do Ocidente não é acerca da vitória das nossas preferências políticas particulares. É — como me ensinaram pessoalmente e enfaticamente o Austro-Britânico [Sir] Karl Popper e o Germano-Britânico [Lord] Ralf Dahrendorf — acerca da possibilidade de mudar de Governo sem violência (“without bloodshed”, na consagrada expressão de Popper).
Isto significa que a democracia liberal do Ocidente não é acerca da “justeza”, ou da “concordância” com projectos/modelos/tribos particulares (“blueprints”, na designação crítica de Popper), mas acerca da possibilidade de alternância pacífica entre propostas de políticas públicas (desejavelmente não “blueprints”, disse Popper) particulares, diferentes e rivais.
3 Estará o Presidente-eleito, sr. Donald Trump, em consonância com este entendimento da democracia? Ele certamente não respeitou esse entendimento da democracia quando em 2020 não respeitou a sua derrota eleitoral e alimentou as mais grosseiras acusações contra o “sistema” — incluindo uma tentativa de assalto terceiro-mundista contra o Capitólio, a 6 de Janeiro de 2021.
Mas, agora que ganhou expressivamente as eleições com toda a legitimidade, creio que os democratas liberais devem fazer votos de que tenha aprendido alguma coisa e de que possa re-aprender o mistério da democracia: a obediência a regras gerais de boa conduta, incluindo a mesma elegância em saber ganhar (que até agora parece ter mostrado) e em saber perder (que em 2020/21 não mostrou).
4 Uma outra questão, muito mais específica, consiste em saber que espécie de programa político está associado/subjacente à vitória eleitoral do sr. Trump. É um tema muito complexo que não posso abordar sucintamente neste espaço — e que vem naturalmente ocupando intensa reflexão no plano nacional e internacional.
Um ponto muito simples, todavia, gostaria de (voltar a) enfatizar: diferentemente do que proclamam os entusiastas (ou os revolucionários) da chamada esquerda e/ou da chamada direita, não há uma simples dicotomia entre “esquerda vs. direita”, ou entre “progressistas vs. conservadores”. Nas democracias liberais do Ocidente, aprendemos a distinguir entre várias “esquerdas” e várias “direitas”. Pelo menos entre esquerdas e direitas não-revolucionárias e não-populistas, por um lado, e esquerdas e direitas revolucionárias e populistas, por outro.
5 Dizem-me que nas ditaduras da Rússia, da China, do Irão e da Coreia do Norte não gostam destas subtilezas — a que chamam burguesas, capitalistas, liberais, conservadoras e ocidentais.
6 Estes títulos — burguesas, capitalistas, liberais, conservadoras e ocidentais — vêm mesmo a propósito de uma notícia recente sobre a mais antiga revista semanal do planeta, The Spectator de Londres, fundada em 1711. Acaba de ser vendida por 100 milhões de Libras a Sir Paul Marshall e acaba de declarar solenemente a sua fidelidade à orientação editorial de sempre: “não uma re-invenção, mas uma restauração”.
Trata-se da revista “conservadora-liberal” de referência no Reino Unido. Descrevendo a sua linha editorial, o diretor cessante, Fraser Nelson, escreve que “a nossa lealdade não é para com nenhuma tribo política, mas para com a elegância de expressão, independência de opinião e originalidade de pensamento. E para com a arte e o humor”.
Em seguida, sublinha a importância crucial da permanente reserva de champagne Pol Roger (o favorito de Winston Churchill) nas instalações da revista (Old Queen Street), para onde convidam os leitores com alguma frequência. Tenho particular gosto em registar que o nosso Amigo [Lord] Charles Moore, biógrafo autorizado de Margaret Thatcher e antigo diretor da revista, passa agora a Chairman, mantendo a sua coluna semanal “The Spectator Notes”, e deixando enfático elogio a Fraser Nelson.
7 Estará o Presidente-eleito sr. Trump disponível para apreciar estas antigas tradições das boas maneiras e da decência democráticas — “burguesas, capitalistas, liberais e conservadoras” — da Aliança Euro-Atlântica e do Ocidente? Façamos votos de que possa agora aprender com a vitória a elegância que, há quatro anos, negou na derrota: “Afinal, o ‘sistema’ funciona”.