Não obstante a existência de ensino superior privado há décadas, nenhum projecto para o ensino médico foi aprovado até agora. As necessidades organizacionais, exigência da formação e custos financeiros podem ser explicação. Era conhecimento público que estavam em análise várias propostas pela A3ES, que é a Agência Pública de Avaliação do Ensino Superior a quem compete,  também, a apreciação de qualquer novo projecto de curso superior, e soube-se que a Ordem dos Médicos emitira parecer desfavorável, mas não vinculativo.

O tema chegou à ribalta mediática em torno de um dos projectos após a sugestão pelo Poder político que a sua implementação poderia ser solução para o problema da carência de médicos de família e de alguns especialistas no SNS, a que se seguiram intervenções na imprensa de responsáveis dessa proposta. De facto, extrapolar que a falta de profissionais no SNS é consequência de formação de médicos em número insuficiente pelas oito escolas médicas existentes é um sofisma e o apelo ao ensino privado como solução potencial um passe de magia que me surpreendeu por três razões.

A primeira, pela simultaneidade com a interpelação veemente à Ordem dos Médicos pelo parecer desfavorável, a segunda, porque quer na conjuntura parlamentar que suportou o governo como no discurso político recente na Saúde, o apelo à cooperação do sector privado na solução das contingências do SNS era quase anátema. Uma novidade, portanto. A terceira é curiosa: sendo a educação e formação Médicas longas, teríamos que esperar pelo menos 8 (?) anos até que um curso privado iniciado agora contribuísse com novos médicos de família e especialistas para as carências do SNS. Seria notável a resiliência do SNS e dos portugueses se tal fosse a terapêutica!

Como noutros aspectos da vida nacional impõe-se separar o acessório do essencial e evitar contaminação supérflua que nada adianta. O assunto é importante, e até por ter ocupado as funções de director da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), pareceu-me útil contribuir para o debate necessário.

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1. Carência de Médicos: é um equívoco.

Portugal, pela relação número de médicos / 100 000 habitantes, ocupa o terceiro lugar entre os países da OCDE e as oito escolas médicas e formam anualmente cerca de 1600 novos médicos. A este número deve adicionar-se algumas centenas da diáspora dos estudantes de medicina portugueses espalhados pelas universidades europeias, cuja maioria ainda procura integrar-se na carreira médica nacional. Insiste-se ainda noutro equívoco: a redução excessiva no número de vagas de acesso ao curso médico nos anos 80 e 90, limitação que foi ultrapassada nas décadas subsequentes. Aumentou significativamente o numerus clausus e foram criadas três novas escolas médicas desde esse período e um contingente adicional de 15% do número global de vagas para os candidatos > 23 anos com outras licenciaturas. Portanto, carência de médicos para justificar abertura ao ensino privado é um não assunto!

2. Porque faltam Médicos no SNS?

Notícia de concurso nacional para médicos de família e especialistas em Saúde Pública com reduzida ocupação das vagas, em especial no Alentejo – onde a carência é maior e só 15% das vagas foram preenchidas é reveladora, assim como a informação sobre novo impulso recente à emigração de médicos especialistas e recém-formados! Compensação financeira insuficiente? Deterioração das condições de trabalho? Ou ausência de projecto renovador para o serviço público, como foi para a minha geração a implementação do SNS?

Estudo da Universidade de Coimbra evidenciou não haver falta de médicos, mas sim deficiente distribuição pelo território e que carências em algumas especialidades poderiam ter sido minoradas com uma política de gestão de recursos humanos adequada e melhor previsão das necessidades eventuais.

A contratação de médicos – tarefeiros – a empresas prestadoras de serviços, para cobrir necessidades, na urgência e noutros serviços, passou de recurso a habitualidade e criou um mercado aliciante. Nunca percebi esta opção. Mais cara, corrói o espírito de equipa, dilui a responsabilidade institucional e desvaloriza a carreira médica. A contratação de médicos estrangeiros, especialmente médicos de família para zonas carenciadas foi positiva, mas perdeu impacto pela menor apetência de candidatos, tentados por melhores salários noutras paragens.

O problema das disfunções do SNS e da falta de médicos no serviço público é bem mais complexo e as causas são conhecidas. Organização deficiente, planeamento inadequado, subalternização e desvalorização das carreiras médicas, modelo de financiamento insuficiente, desmotivação dos profissionais, deterioração das condições da prática clínica, centralização excessiva com autonomia insuficiente das instituições e dificuldade na compatibilização duma gestão de proximidade com a política global de saúde.

Não se aplicam só aos médicos, mas também a outros grupos profissionais.

Mas desenvolver a colaboração já existente com instituições privadas, isoladamente ou em parceria com o SNS, na formação em especialidades mais carenciadas poderia ser uma boa solução, pendente de avaliação pela Ordem dos Médicos, como aliás já começou a concretizar-se.

3. Ensino privado e novo curso de Medicina necessários?

Não havendo efectiva carência de médicos e conhecendo-se a complexidade de disfunções no SNS, coloca-se uma questão – que finalidade para o exercício e qual o seu interesse público? E duas perguntas. Primeira, poderá a Sociedade absorver os novos licenciados? Não creio que qualquer dos projectos proponentes de escolas médicas privadas tenha como objectivo formar quadros para as suas instituições de Saúde. Seria visão sem grandeza nem futuro, daí resultaria um risco de fechamento das instituições à competição pelos melhores profissionais, repetindo erro que sempre apontei no sector público à filosofia da casa e para a casa a qual dificulta a circulação dos profissionais nas instituições e compromete selecção meritocrática. Segunda, pretende-se formar técnicos diferenciados para o mercado internacional, como vai acontecendo nas outras profissões da Saúde? Será por isso que se propõe o inglês como a língua oficial em cursos privados?

Uma nota: se o objectivo é formar médicos para a realidade nacional e espaço lusófono, então a formação médica não pode dispensar o Português. O acesso à informação médica em inglês é comum nas nossas escolas médicas, é frequente docentes e investigadores estrangeiros comunicarem sem qualquer embaraço ou dificuldade com os docentes, investigadores e alunos. Se pelo contrário, o objectivo é responder a uma necessidade do mercado mundial em formação médica, então compreende-se, mas será eventualmente conveniente ter tradutores preparados que
acompanhem esses estudantes no contacto com os doentes portugueses! Nada de errado nisso, outros países o fazem e tiram disso proveito, mas convém não ignorar o assunto nem defraudar expectativas.

4. Será uma mais–valia?

A educação e formação médicas em Portugal são de qualidade reconhecida. Comprovam-no o prestígio internacional da Medicina Portuguesa, de algumas das suas instituições, o reconhecimento de médicos com funções relevantes em organizações e sociedades científicas internacionais, dos bolseiros no estrangeiro e também dos alunos que através do programa Erasmus são o espelho da nossa Educação Médica. E pormenor muito importante: ensina-se o valor da relação médico-doente, a importância fundamental da comunicação com o doente e familiares e o respeito pelos valores de uma cultura humanista que tem sido tradição da Medicina Portuguesa e que não se perdeu!

O sector privado na Saúde evoluiu nas últimas décadas com expansão dos cuidados médicos, ambulatórios e hospitalares como resposta a um novo mercado dos seguros de Saúde e à exigência e direito de escolha dos cidadãos. E, noutra dimensão, consolidaram-se iniciativas exclusivamente privadas na investigação biomédica com prestígio e impacto científico, nacional e internacional.

Neste contexto, o ensino privado de Medicina poderá configurar um desenvolvimento natural e uma aspiração legítima … desde que sejam cumpridos os requisitos indispensáveis para a educação médica moderna, comporte inovação e potencie investigação. Só assim será uma efectiva mais – valia para a Medicina, a Academia e a Comunidade. E este é o cerne da questão!

5. Que requisitos para a educação médica moderna?

Primeiro, integração e capacidade de intervenção na Sociedade de modo a providenciar aos alunos vivência transversal da realidade social e não apenas parcelar e limitada aos segmentos mais afluentes da sociedade. Segundo, promover uma cultura médica assente na Ética, na defesa da solidariedade e dos valores humanos essenciais e na abertura à inquietação científica e inovação. Terceiro, formação científica sólida e orientada para a clínica, baseada num ensino integrado das diversas disciplinas evitando compartimentação e repetição de informação. Quarto, organização integrada de modo a permitir acesso dos estudantes aos sectores ambulatório, hospitalar e pós-hospitalar dos cuidados médicos, permitindo exposição adequada dos alunos à realidade clínica prática. Quinto, disponibilidade de serviços clínicos de qualidade reconhecida com diversidade de patologias, das simples às mais complexas. Sexto, corpo docente com competência pedagógica, dimensão científica e empenhamento na investigação, de modo a prevenir o fenómeno de turbo-professores que, noutras áreas, marcou tão negativamente o ensino privado. Fará sempre melhor ensino e mais credível quem tiver experiência reconhecida e investigação.

Criar uma escola médica e sedimentar cultura e reputação é um processo complexo, difícil e longo. As parcerias com instituições estrangeiras que disponibilizam programas, textos de apoio, conteúdos, em língua inglesa e participação dos seus docentes podem ser importantes. Algumas têm contributos relevantes na inovação pedagógica. Vivemos numa sociedade aberta e essa estratégia até pode trazer vantagem, mas é fundamental a sua adaptação às realidades locais, dos docentes aos discentes, e não simplesmente a repetição de manuais e conteúdos em inglês.

Uma iniciativa nova cumprindo os requisitos mencionados, introduziria competitividade com as instituições públicas o que poderia, até, ser globalmente salutar e produtivo.

O que não se discutiu é a oportunidade para a reforma, necessária e desejada do ensino médico, que permitisse repensar a sua organização. A começar pelo acesso ao curso de Medicina, que é urgente mudar, contemplando as Humanidades e aprofundando áreas afins nas Biociências. Depois, restruturação do currículo pré-graduado e reorganização dos serviços clínicos dedicados ao ensino, ainda demasiado compartimentados e estanques, onde é difícil compatibilizar visão moderna da Medicina centrada no Doente e baseada em equipas multidisciplinares e pluriprofissionais, com as necessidades do ensino clínico actual.

E, finalmente, abertura à inovação, da nova tecnologia de diagnóstico e intervenção à mudança organizacional que a difusão das plataformas de Inteligência Artificial irá trazer. Estão por concretizar as reformas na renovação organizacional baseada nos Centros Académicos de Medicina, iniciada pela Portaria de Outubro de 2008 dos Ministros da Educação Superior e Saúde – mudou-se o nome, nada mais aconteceu! – a criação de rede de instituições cuidados ambulatórios, hospitalares e pós-hospitalares, estruturadas e interdependente para o ensino e investigação. Este novo modelo requer autonomia e financiamento plurianual por objectivos sem o espartilho da organização actual. Tudo isto, poderia permitir encurtar a duração do curso, aumentar a sua rentabilidade, reduzir o peso duma escolaridade excessiva e proporcionando autonomia profissional mais precoce. Um passo indispensável: é necessário convocar a universidade como parceiro efectivo, uma verdadeira parceria pública para a medicina académica que tarda em concretizar-se.

Finalmente, uma outra questão — abertura à internacionalização. Será projecto mais ambicioso que a disputa de alunos estrangeiros como fonte de financiamento adicional. Existe e funciona nas instituições públicas de ensino e investigação. Comporta participação em projectos de investigação fundamental e clínica, na formação pós-graduada, em bolseiros estrangeiros frequentando as unidades académicas nacionais e em iniciativas internacionais de cooperação pedagógica e científica. A abertura das escolas médicas públicas a alunos estrangeiros, que não é possível actualmente, será mais um passo que se saúda, embora chegue tardiamente! E é importante que não seja exclusivo do sector privado. Insere-se na vocação europeia e atlântica de exportação da Educação Superior. A Universidade pública e o sector público da Saúde têm uma missão indeclinável: competir, disputar e formar os melhores e mais aptos, sem discriminação económica ou outra.

Por isso, rever os constrangimentos actuais do ensino público de medicina tem que ser uma prioridade, e deve mobilizar o poder político, porque o tempo urge e a oportunidade passa! A A3ES, agência de avaliação e acreditação do Ensino Superior procedeu à avaliação das escolas médicas nacionais e conhece bem a realidade nacional. Poderá fazer apreciação rigorosa, comparativa e isenta das propostas avançadas e avaliar se a sua implementação corresponderá a uma necessidade e se representará efectiva vantagem e mais-valia para a educação médica em Portugal, para a Academia e para a sociedade.

Professor Catedrático da FMUL