Chegámos ao Porto 98.4 FM Em Lisboa 98.7 FM Filipe Anacoreta Correia Seguir Entre a vida e a dúvida David Goodall não estava doente, nem em sofrimento terminal. Estava simplesmente velho, debilitado, condicionado nas suas faculdades. Queria ser morto a pedido. É isto que se pretende com a eutanásia? 18 Mai 2018, 00:11 332 1. Nos últimos tempos tem-se feito do debate sobre a eutanásia um diálogo de sádicos. Diante de alguém que sofre, que não vê sentido ou utilidade em viver, seria no mínimo sádico – defende-se – não permitir a ajuda para a sua desejada morte.2. Várias notícias ecoaram recentemente o caso de um cientista australiano, com 104 anos, que cometeu suicídio assistido na Suíça. David Goodall era há muitos anos um ativista da consagração do direito fundamental a uma “morte planeada”, sendo membro de uma organização nesta área (“Exit International”). 3. Em declarações à CNN, Goodall afirmara que teria preferido morrer quando lhe retiraram a carta de condução, em 1998. Viveu mais 20 anos para em 2004 receber um doutoramento honoris causa e em 2016 ser condecorado pelo Governo australiano.4. David Goodall não estava doente, nem em sofrimento terminal. Estava simplesmente velho, debilitado, condicionado nalgumas das suas faculdades. Apesar de tudo, muito bem para a admirável idade de 104 anos. Disse que “obrigar alguém a permanecer vivo, mesmo quando já não há nada para viver” é “cruel”. Cá está, é para sádicos.5. O caso não mereceu a indignação dos defensores da Lei da eutanásia em Portugal. Ninguém se parece ter insurgido contra a veleidade ou desumanidade do exemplo de David Goodall. Pelo contrário, David Goodall foi noticiado como arauto de uma pretensão serena, adulta e livre. 6. O exemplo de David Goodall diz-nos que se luta hoje, quando sem artifícios ou reservas mentais, para que seja consagrado um novo direito: o direito a ser morto a pedido. A consagração de um tal direito representa uma descontinuidade com tudo aquilo que até aqui afirmámos na nossa ordem social e jurídica. Uma tal consagração tem de ser bem equacionada e totalmente convincente. E não estou apenas a invocar o argumento de autoridade e da difícil conciliação com a Constituição da República Portuguesa. Sim, que determina que a vida humana é inviolável.7. Se podemos consentir na violação da vida, há algum mal que não possamos consentir? Por exemplo, porque não podemos consentir na mutilação genital feminina, a pedido? E com a legalização da morte a pedido, não estamos a introduzir na prática a pena de morte para os prisioneiros que a peçam? E porque não para um rapaz de 16 anos, idade suficiente para a autodeterminação sexual? As hipóteses podem multiplicar-se, como têm vindo a multiplicar-se na prática doutros países. Uma vez autorizada para uns, porque não para os outros? Quem sou eu para o negar? É o que tem sucedido num fenómeno que foi batizado como a rampa deslizante. Os números falam por si. Na Holanda, por exemplo, já se cometem mais de 20 eutanásias por dia.8. O Conselho Nacional para a Ética das Ciências da Vida emitiu um parecer sobre o projeto do PAN sobre a morte assistida. Em cerca de 20 conselheiros, apenas um se mostrou favorável à proposta. São membros indicados por diferentes Partidos, por organizações da sociedade civil, académicos, e representantes de ordens profissionais (Advogados, Médicos, etc). Ou seja, a sua composição é plural e insuspeita. O CNECV foi a única entidade que seriamente promoveu um debate alagado sobre a matéria, com várias sessões e convidados para todos os gostos. No final, 95% dos votos foram contra o diploma.9. A introdução duma tal consagração exige, no mínimo, muita prudência que não está minimamente assegurada. Não sou eu que o digo. A organização favorável à eutanásia, plataforma designada Wish to Die, veio pedir ponderação e estudo de melhores soluções. “Neste momento, o grande objetivo da plataforma é influenciar a discussão no sentido de todos podermos ganhar tempo para encontrar melhores soluções” disse Miguel Ricou coordenador daquela plataforma.10. Diante de tudo isto, como não ter pelo menos dúvidas sobre a matéria e sobre o timing da sua implementação? E diante de dúvidas como não pedir mais tempo, esclarecimento e debate aprofundado? Quando estamos entre a vida e a dúvida, importa escolher a opção que não fecha, mas abre o diálogo a um maior aprofundamento no futuro. A recusa destas propostas legislativas não será necessariamente cabal, mas uma vez consagrado um direito irreversível, todos concordaremos que mais dificilmente se voltará atrás.