Ainda está longe o fim do combate contra a Covid-19, mas já se pode afirmar que as relações internacionais irão sofrer profundas alterações e o bipolarismo voltará a ser uma realidade.
A disputa central terá lugar entre a China, que vai aproveitar a situação para reforçar a política internacional, e os Estados Unidos, que tentarão manter a sua hegemonia. Em torno desses dois polos irão girar satélites como a Rússia, no primeiro caso, e a União Europeia, no segundo.
Já antes da pandemia se observava uma rápida aproximação entre Pequim e Moscovo. Vladimir Putin decidiu, em 2014, “virar-se de frente para o Oriente”, “atirando para trás das costas” a UE e os Estados Unidos.
Este processo teve várias razões. As estruturas das economias da China e da Rússia completam-se mutuamente; Pequim aumentou significativamente a importação de petróleo e gás da Sibéria, o que constitui uma fonte significativa de rendimentos no orçamento da Rússia; Moscovo depende cada vez mais de Pequim na importação de maquinaria e tecnologia devido às sanções impostas pela União Europeia e pelos Estados Unidos; os regimes políticos estão cada vez mais próximos e a extensa fronteira requer garantias de segurança.
Isto reflecte-se em números: as trocas comerciais entre a Rússia e a China subiram de 88,8 mil milhões de dólares em 2013 para 110,9 mil milhões em 2019.
Todavia, esta aproximação poderá acelerar-se ainda mais após a pandemia. As medidas de combate à Covid-19, a redução das exportações de petróleo devido ao acordo OPEP+ e a diminuição da procura de gás pela Europa, devido à recessão económica aí registada, poderão reflectir-se de forma negativa na economia russa.
Por outro lado, a economia chinesa é a menos afectada pela pandemia e a sua recuperação, baseando-se, nomeadamente na construção de novas infraestruturas e no desenvolvimento das suas atrasadas regiões ocidentais, irá aumentar as importações de petróleo e gás russos.
Tendo em consideração a diferença dos ritmos de desenvolvimento económico dos dois países, bem como o papel crescente da China nas relações internacionais, é impossível falar de uma cooperação bilateral igual.
Além do mais, Moscovo e Pequim concorrem numa zona importante do ponto de vista da segurança internacional: a Ásia Central. Se a Rússia vê nas antigas repúblicas soviéticas dessa região uma zona da sua influência, o Império do Meio desde há muito que lançou uma ofensiva económica aí, concorrendo cada vez mais nessa região fulcral para a segurança desses dois países.
Nesta situação, a Rússia deixa de ser um dos polos da política internacional, não recuperando, nem de longe, a influência da URSS. A crise económica e social que se irá fazer sentir no país não permitirão ao Presidente Vladimir realizar à diplomacia musculada e agressiva, relevante principalmente após a ocupação da Crimeia e da intervenção militar na Síria. O Kremlin também não terá fartos meios económicos e financeiros para continuar a sua ofensiva em África e na América Latina.
Mais: a crise económica e financeira coloca mesmo em causa os planos de Vladimir Putin no interior do país. Ele planeava fazer de 2020 o ano do seu triunfo com a realização da “votação nacional” com vista a eternizar-se no poder para além de 2024 ou com as comemorações do 75º aniversário da vitória do Exército Vermelho sobre o nazismo. Porém, a pandemia do Covid-19 veio “baralhar as cartas”. As autoridades russas não conseguiram provar que o Estado autocrático criado por Putin é mais eficaz na protecção à doença do que os regimes democráticos da Europa, revelando uma enorme falta de coordenação entre os poderes central e regional. O Presidente decidiu chamar a si a distribuição de subsídios, atirando para cima do governo e das autoridades regionais a superação dos obstáculos criados pela Covid-19.
Em caso de deterioração da situação política e social na Rússia, Vladimir Putin poderá recorrer à experiência chinesa de combate aos seus opositores, mas o risco de falhar é grande, pois as condições na Rússia são muito diferentes das existentes na China.
O Kremlin não pode apostar no melhoramento das relações com os Estados Unidos, pelo menos até às presidenciais norte-americanas de Novembro de 2020. A reeleição de Donald Trump não abre grandes perspectivas aos contactos bilaterais e, se o escrutínio for vencido por Joe Biden, elas serão ainda muito mais reduzidas. Tradicionalmente, os russos sempre lidaram melhor com os republicanos do que com os democratas.
Além da Rússia, há outro importante protagonista das relações internacionais que irá sair enfraquecido pela pandemia: a União Europeia. Por isso, seria sensata a aproximação entre Moscovo e Bruxelas com vista a conservar e reforçar o papel de ambas no equilíbrio mundial. Todavia, é difícil acreditar que tal possa acontecer a curto ou até mesmo a médio prazo. Isso exigirá, entre outras coisas, o termo da agressão russa no Leste da Ucrânia e o fim da aposta do Kremlin na destruição da União Europeia. Será também fundamental que a UE garanta a sua própria sobrevivência e consiga elaborar uma política externa conjunta.