1 Uns destes dias, a foto de primeira página de um diário espanhol dizia tudo sobre a importância do momento: em primeiro plano, o abraço grave de Filipe Gonzalez a Alfonso Guerra – seu vice durante anos na presidência do governo espanhol – trocado na semana passada em Madrid no lançamento de um livro de Guerra. Apesar de há mais de vinte anos estarem em más relações e rarissimamente se terem falado, Gonzalez e Guerra perceberam ambos a indispensablidade do seu gesto: trocar aquele abraço perante uma plateia repleta de socialistas, era um imperativo. Infinitamente mais que uma reconciliação, selava uma certeza absoluta e uma firmeza de aço: a vontade em publicitar a revolta e a vergonha dos dois face à disponibilidade de Pedro Sanches para liderar a caminhada explosiva da Espanha a caminho do abismo. Não há de facto palavras que cheguem para fixar em texto a demencial irresponsabilidade de um chefe político capaz de negociar – e sempre cedendo – a sua manutenção no poder a troco do desmembramento da nação a que pertence. Nem adjectivos para descrever como Sanches e uma das suas vice, Yolanda Diaz – produtora e abelha mestra de uma manta de retalhos partidária chamada SUMAR – se têm aprimorado nesta desgraça. Desmentindo-se a si mesmos face ao que recusavam antes da campanha eleitoral, abrem agora com urgência os braços e com pressa as portas do poder ao Junts de Puidgmont – detidos uns, foragidos outros, pouco recomendáveis quase todos – e à ERC. Acedendo Sanches a ouvir, negociar e depois prometer uma inconstitucional amnistia como moeda de troca pelo seu apoio na investidura de um novo governo do PSOE. Já houvera uma espécie de brinde a Puidgmont, com a recentíssima estreia absoluta do uso de mais de uma língua no Congresso espanhol – além do castelhano, entraram em cena no parlamento nacional o basco e o catalão – apanhando de abismada surpresa o país inteiro e deixando uma considerável parte dele no limbo de uma irada indignação.

Sem aviso, discussão prévia ou consulta, foi apenas mais uma perigosa satisfação dada a Puidgmont. E pedirá ainda mais o líder do Junts além da prometida amnistia e da tão falada “autodeterminação”, condenadas uma e outra pelo Supremo?

2 Gonzalez e Guerra foram fortíssimos na forma e impiedosos na substância. Estava em causa o que ali os unia politicamente, “a democracia, a constituição, o socialismo”, e o que ali os trouxera: dizê-lo em voz alta. É natural, nunca, nem um, nem outro, se afastaram da sua própria interpretação da política e do que quiseram fazer com ela quando há quase 50 anos ambos fundaram um PSOE “que hoje começam a não reconhecer”:

“Dissidente é ‘o outro’” que muda de opinião e um dia defende uma coisa e outra e outra”, e não eu que “siempre me he mantenido en lo mismo”, desferiu Alfonso Guerra, referindo-se a Sanches. Filipe Gonzalez, não destoou no seu visceral apelo ao PSOE para que reagisse: “Não conheço nenhum país democrático que introduza um elemento de autodestruição na sua unidade e na sua integridade. Não podemos deixar-nos chantagear por ninguém e muito menos por minorias em vias de extinção. Cada um pode ter as sua ideias mas nunca passar por cima da legalidade. Nem a amnistia nem a autodeterminação são constitucionais. Eu não me resigno e comigo estão muitos que também não se resignam.”

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Coincidência feliz e oportuníssima que um passado zangado não impediu: nem Gonzalez nem Guerra têm uma só dúvida quanto a esta questão. Que é como quem diz , e agora PSOE?

Eu não sei se Alfonso Guerra vendeu muitos ou poucos exemplares do livro que ali lançava naquela tarde – “La Rosa e las Espinas” (La Esfera) – mas sei que a sala transbordante e intergeracional de políticos socialistas (sem qualquer membro da direção do PSOE), e muita sociedade civil, rejubilou. Com razão: o abraço de dois históricos do PSOE pusera a política no vermelho: não vale tudo.

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3 Tive o privilégio de entrevistar Gonzalez por três vezes, para o Expresso (as três fotos de Rui Ochoa aqui o testemunham): duas na oposição, parecia ele um cigano andaluz, a terceira já como Primeiro Ministro no seu gabinete do Palácio da Moncloa. E – jóia da coroa – tivemos ainda a honra, Mário Soares e eu, de em 1992 ter tido Filipe Gonzalez como apresentador da tradução espanhola de um dos livros que fiz com Soares. Um momento daqueles – um fim de tarde de inverno no Palace de Madrid – que sabemos nunca poder esquecer mas não sabemos como agradecê-lo aos deuses.

Por tudo isto nunca perdi de vista o caminhar político de Filipe Gonzalez como líder do PSOE, primeiro na oposição, depois como presidente do Executivo espanhol durante anos; conseguiu ser sempre fiel á matriz da social democracia, era esse o lugar que escolhera para si na esquerda, era dali que queria intervir, aplicando os seus mandamentos na condução dos destinos da Espanha. Deixou inconfundível e inesquecível impressão digital no seu partido e no seu país. (Dizem que não acabou bem. A Historia dirá felizmente o contrário).

4 Se Puidgmont não surpreende – é desde sempre uma fonte inesgotável da água da irresponsabilidade – fico sem saber quem é Pedro Sánchez, motor e pivot desta aventura. Que fará se, como acaba de anunciar, conseguir formar governo de novo, diante de uma Espanha irreversivelmente atingida nos seus mais fulcrais alicerces? Como se lida politicamente com o princípio do fim?

O que sei é que há dias era a Espanha que estava dentro do histórico abraço de Filipe Gonzalez a Alfonso Guerra.

5 Pensei muito nisto tudo ontem, diante do equinócio bravio de uma deserta praia atlântica. Tive pena que as ondas debruadas do branco da espuma impedissem o mergulho, ter-me ia afogado mas os equinócios são coisas da natureza. Contamos com elas e com a cadência ritmada da sua certeza. Os equinócios políticos, não. São perigosos, apanham-nos desprevenidos, podem ser selváticos. E ao contrário dos da natureza terem vindo para ficar. O que me vale – tristíssima consolação – é talvez ter apendido que em política pode haver sempre pior.

Em Espanha parece ser o caso.

PS: Já quase de madrugada vim a saber que Miguel Albuquerque que ganhou as eleições de ontem na Madeira era “o” grande derrotado delas. Media dixit. Alguma pelo menos. Por um deputado Albuquerque não subiu o último lance da escada mas afinal fica. Faz bem, pese aos indignados: durante a campanha nunca souberam “ler” politicamente as ameaças de partidas definitivas do líder regional do PSD, e depois dela não perceberam que o desfecho só podia ser este: ficar e à mesma com maioria absoluta porque o que não vai faltar ao PSD são ofertas de deputados. Já houve e já se sabe que houve e de quem houve. Chama-se a isto política e se há político dotado, arguto, combativo e corajoso é Miguel Albuquerque. Embora eu não deixe de me interrogar — e isto pouco tem a ver com ele — sobre o extraordinário facto de há quase 50 anos milhares de madeirenses, em eleições livres, estarem tão disponíveis (ou quase exclusivamente disponíveis) para o mesmo: o mesmo voto, o mesmo partido, as mesmas pessoas, a mesma cartilha, a mesma cor. Não: não é só demérito das oposições, apesar de fracas quase sempre. Vale a pena perguntar onde esteve o engenho e a arte políticas, regional ou nacional, para inverter a tendência nos partidos da oposição? E onde está — esteve — a sociedade civil, a intelectualidade, a juventude, capaz de com o seu empenho e vontade inspirar melhores lideres e exigir mais fortes partidos, intervindo, inovando e contrabalançando? Não existe? Não se importa, não estranha? Não teria curiosidade em mudar? Ou instalou-se simplesmente e de vez?

Não nego nem uma gota de mérito a este poder que se eterniza: assinou grande feitos e produziu — e produz -. grandes progressos: do nível de vida às infra-estruturas passando pela educação e a inovação, por exemplo. Mas mesmo admitindo que tudo isso que é imenso tenha sido mais importante que erros, abusos e insultos a República, e que Albuquerque seja um grande político, eu espanto-me.