António Costa acha que pode dizer à Holanda que ela está a mais na União Europeia. Tanto acha que o disse: Temos de saber se podemos seguir a 27 na União Europeia” ou se a Holanda “vai querer ficar de fora”.

António Costa acha que pode ter um discurso em Lisboa, para os que batem entusiasticamente palmas patrióticas sempre que ataca a Holanda e outro na União Europeia, de que a Holanda por acaso até é um dos membros fundadores, que a Holanda por acaso também financia generosamente como um dos maiores contribuintes líquidos. Tudo isto a menos de um ano de Portugal ocupar a presidência do Conselho Europeu, um lugar onde terá de entender-se com todos os estados-membro, incluindo a dita Holanda.

António Costa acha ainda que pode fazer este tipo de discurso e ao mesmo tempo criticar o “nacionalismo” (o dos outros, não aquele que ele explora despudoradamente) e reclamar “solidariedade” (a dos outros, já que quando chegou a hora de fecharmos fronteiras e aeroportos não nos distinguimos pela nossa “abertura”).

António Costa acha isto tudo porque não vivemos tempos normais – vivemos tempos em que a principal variável passou a ser o medo. Todos têm medo e ele também.

Há apenas três meses as nossas autoridades respiravam confiança. “Não temos de estar alarmados, a natureza é assim”, dizia a 15 de Janeiro a directora-geral de Saúde, Graça Freitas, a propósito de um novo vírus que fora identificado em Wuhan. “Não há grande probabilidade de chegar a Portugal”, pelo que nem se justificava o alerta.

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Pois não, viu-se.

Em poucas semanas estas certezas ruíram e com elas a sensação de que a ciência e a medicina modernas nos protegiam e punham a salvo das grandes pandemias do passado. Como fogo em palha seca, o vírus espalhou-se pelo mundo inteiro e tornou-se na preocupação única, obsessiva, de humanidade. Vai chegar cá? Posso apanhá-lo? Corro o risco de morrer? Como é que me protejo?

A alguns países a doença chegou tão depressa e tão sem aviso que os sistemas entraram em colapso – como em Itália, como também em Espanha. Outros, como nós, tiveram tempo para ver o que podia acontecer, pelo que o confinamento já tinha começado até antes de o Governo o decretar.

É assim que estamos há um mês. Fechados em casa, com medo. Disciplinados nas filas dos supermercados, com medo. Dispostos a acatar um terceiro período sem aulas em praticamente todos os graus de ensino, por medo. Disponíveis até para começar a denunciar o vizinho que se demora a passear o cão, o que já vai para além do medo.

Mas este é só um dos rostos do medo. Aquele a que temos dado mais atenção. Um outro medo cresce ao lado deste, e vai-lhe ganhando terreno. O medo do fim do mês. Das contas por pagar. Do desemprego. Do desmoronar do pequeno negócio que levou tantos anos a montar. Do desfazer dos sonhos de alguma tranquilidade económica.

Ao lado do medo de morrer, cresce o medo de não ter como viver. E cresce sobretudo entre os mais pobres – ao fim do primeiro mês quase metade dos que ganhavam menos de mil euros mensais já perderam rendimento. É arrepiante e é uma realidade que está a passar demasiado ao lado do radar das notícias.

Temos medo porque deixámos de conhecer as regras do mundo em que vivemos.

Acreditávamos na ciência e na medicina e dizem-nos que temos de esperar mais de um ano pela vacina. Mais de um ano? Tanto tempo indefesos?

Acreditávamos num mundo sem fronteiras e de repente vimos as fronteiras fecharem-se, vimos estrangeiros serem levados à força para locais de quarentena, vimos cercas sanitárias montadas em redor de concelhos, vimo-nos até confinados por três dias aos nossos concelhos de residência. Mas alguém sabe dizer se é mesmo para durar?

Acreditávamos na bondade das organizações supranacionais, e eis que de repente descobrimos que a Organização Mundial de Saúde foi uma marioneta nas mãos da China e que a nossa “querida” União Europeia não tem, afinal, quaisquer competências na área da saúde. Nem uma só linha nos tratados. Cada um por si e salve-se quem puder, agora e para sempre?

Acreditávamos nas leis da economia, mas ninguém tinha previsto nada de parecido com o que nos está a suceder. As receitas que conhecemos para outras crises, outros desequilíbrios, parecem-nos agora totalmente desajustadas. Mas onde está um Keynes ou um Friedman que nos mostrem o novo caminho a seguir?

Pisamos terra incógnita de olhos vendados. Porque não havíamos de ter medo?

Saber como lidar com este medo será a prova de fogo dos nossos líderes. Porque mandar as pessoas para casa foi fácil, tirá-las de lá vai ser muito mais difícil.

Semanas a fio a ver gráficos e curvas fizeram de Portugal um país de epidemiologistas. E se os verdadeiros epidemiologistas não se põem de acordo sobre se o pico já passou, está a passar ou ainda está para vir, não se julgue que, sobretudo continuando a sonegar informação ou a maltratá-la como tem feito a DGS ao longo desta crise, se vai agora conseguir por de acordo a legião de “epidemiologistas de sofá” que nunca deixarão de contestar a prudência ou imprudência das decisões tomadas.

Na verdade – dura verdade – nem os melhores epidemiologistas nos podem dizer o que vai acontecer com a evolução da pandemia. Não sabem. Não sabem aqui, como não sabem em França, no Reino Unido ou nos Estados Unidos. Os melhores académicos do mundo divergem radicalmente nas suas previsões. E mudam-nas de dois em dois dias. O “bicho” ainda é demasiado misterioso para sabermos realmente como se comporta.

Na verdade – dura verdade – é que muito dificilmente escaparemos a novas vagas da doença, e isso é verdade para Portugal como é verdade para todos os países que não têm sistemas de vigilância quase policial (ou mesmo policial) dos seus cidadãos.

Se fôssemos só pela opinião dos epidemiologistas e dos médicos tínhamos para meses de confinamento, ou quase.

Isto significa que a decisão será política. Os políticos que rumam semanalmente até ao anfiteatro do Infarmed em busca da data mágica para o fim do confinamento não podem querer que sejam técnicos, cujos nomes nem sequer conhecemos, a tomar a decisão.

O que vai ter de ser decidido é qual o balanço entre o risco sanitário – e o ter de politicamente enfrentar o medo de morrer da população – e o risco de afundar ainda mais a economia e, também, de degradar ainda mais todos os demais cuidados do SNS – e o ter de politicamente enfrentar uma crise mais difícil de debelar.

Quando António Costa dispara contra a Holanda não está senão a tentar sacudir os fantasmas dessa crise que aí vem. Na verdade ele sabe – ou se não sabe tinha obrigação de saber – que as únicas medidas que o Eurogrupo podia tomar com efeito imediato foram aquelas que tomou. Medidas que até foram preparadas pelo ministro francês, membro de um Governo que dias antes fizera figura de corpo presente numa carta conjunta com outros países do Sul da Europa a favor dos coronabonds. Agora já esteve com o ministro alemão no desenho da proposta que saiu do Eurogrupo.

As coisas são o que são e um dos paradoxos destes dias que vivemos é ser do Reino Unido que vem o exemplo da acção mais determinada para salvar a economia, com o Banco de Inglaterra a emprestar dinheiro directamente ao Governo, uma quebra das normas que já defendi também ser adoptada pelo Banco Central Europeu para quebrar este impasse. Só que a Europa está prisioneira das suas regras, mas o Reino Unido não, todos sabemos porquê.

É muito difícil antecipar o que sofreremos, e todos os cenários dos economistas são por enquanto apenas isso: cenários. Não por acaso as projecções para o que nossa economia pode contrair variam entre 3,7% e mais de 20%. Mas muito dependerá de quando rearrancarmos, e esse rearranque está nas mãos do Governo. Ou seja, de António Costa.

O primeiro-ministro deu a entender que não queria o estado de emergência, e depois foi o seu maior defensor – foi quando percebeu que os portugueses já estavam a fechar-se em casa, com ou sem ordem para isso.

Por isso agora ou me engano muito, ou vai esperar que o empurrem para acabar com o confinamento. Vai querer estar bem amparado em vez de liderar. É a isso que todos chamam habilidade. Eu não.