Grande parte do argumento da vacinação, incluindo a motivação para vacinar os jovens com idades acima dos 12 anos, tem sido o da necessidade de o fazer para voltarmos a uma “vida normal”. Outra parte tem sido a necessidade de vacinar este grupo porque temos de atingir a “imunidade de grupo” ou, noutra versão, que é necessário vacinar os jovens para proteger os mais velhos. Na imunidade de grupo seríamos todos escudos humanos de protecção dos indefesos (por exemplo, quem não se pode vacinar por doença, ou por alergia à vacina).
Os dados relativos às vacinas contra a Covid-19 indicam que previnem doença grave e morte. Tal não tem vindo a mudar com as novas variantes, nem o perfil da doença. Porém, estudos recentes sobre a variante delta (Centers for Disease Control and Prevention, Public Health England e Universidade de Oxford) mostram que os valores de C(t) do PCR (e, por inferência, a carga viral) são idênticos entre vacinados e não vacinados. Ou seja, têm a mesma quantidade de vírus.
Tendo isto em mente, e com uma parte muito significativa (70%) da população totalmente vacinada, devemos questionar escolhas políticas do Governo na gestão da pandemia.
Ao longo da vacinação, a DGS não reviu as normas sobre isolamento com contactos de risco. Mesmo os vacinados têm de cumprir isolamento profilático. A “vida normal” continua uma miragem, mesmo com testes negativos.
Os certificados digitais, que vinham ultrapassar a necessidade de testes constantes a assintomáticos sem contactos de risco (medida desaconselhada pela OMS desde o fim de Junho, mas que teimamos em continuar a usar), de nada servem se a carga viral entre vacinados e não vacinados é idêntica.
Não sabemos se a “vida normal” de crianças e jovens vai regressar no próximo ano lectivo. A 10 de Agosto, Graça Freitas anunciou que as regras de isolamento para as escolas seriam revistas perto do início das aulas, acrescentando ainda que, se houvesse informação científica que apontasse no sentido de se poder “com segurança” abrandar as medidas, “será isso que será feito”. Ora, se a DGS seguir a ciência (como afirma ter feito na recomendação da vacinação acima dos 12 anos), os novos dados sobre a carga viral da variante delta indicam que não há qualquer garantia de um ano lectivo sem interrupções, sem turmas a serem mandadas para casa, sem escolas a fechar, sem aulas à distância, sem colocar em risco a normalidade de crianças e jovens.
É importante tentar perceber o que possa vir a acontecer no Outono/Inverno, mesmo com a vacinação. Se aumentarem os casos, vamos aceitar ser sujeitos a confinamentos? Ou, finalmente, vamos deixar de lado a pandemia de “resultados positivos” e de assintomáticos e gerir a pandemia como todas as pandemias sempre foram geridas, com base em sinais e sintomas da doença? Relembremo-nos que os confinamentos eram necessários para “controlar infecções”, “achatar a curva” ou “salvar o SNS”. O SNS não precisa de ser salvo de assintomáticos nem de doença ligeira.
Nos coronavírus humanos em circulação, que provocam constipações e síndromes gripais, a imunidade é parcial e limitada no tempo, levando a reinfecções periódicas. Estes coronavírus constam do relatório do Programa Nacional de Vigilância da Gripe que o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge publica anualmente, analisando a síndrome gripal e os vírus que a provocam (que incluem o vírus da gripe, rinovírus, vírus sincicial respiratório, coronavírus humanos, entre outros). Lendo os relatórios de 2016/17, 2017/18 e 2018/19 (último relatório disponível), apenas em 2018/19 se verificou um óbito por síndrome gripal abaixo dos 15 anos (na faixa 01-02) – ano em que a incidência na faixa etária dos 5-14 anos foi mais alta (865,9 casos por 10 mil habitantes) e em que se registaram cerca de 100 internamentos nessa mesma faixa etária. Em nenhum destes anos houve excesso de mortalidade por síndrome gripal na faixa etária dos 5-14 anos. Até agora, os poucos casos de óbito por Covid-19 em crianças e jovens foram casos em que coexistiam outras doenças graves. Se não vacinamos para a gripe nestas idades por se considerar que a relação risco-benefício não o justifica, porque vamos, então, vacinar para a Covid-19? A imunidade de grupo não seria igualmente válida? E o argumento da protecção dos mais velhos – dado que são eles que morrem de síndrome gripal?
Enquanto sociedade, temos vindo a impor a nós próprios, mas particularmente às nossas crianças e jovens um enorme fardo. Hoje, há o medo de contaminar avós; há isolamentos absolutamente destrutivos de um processo normal de crescimento em termos de aprendizagem, motricidade, socialização e saúde mental; há défice imunitário que se traduz no aumento de internamentos por vírus sincicial respiratório. Sujeitamo-los a tudo isto para servir aos interesses de outras pessoas ou “da sociedade em geral”. No fundo, este argumento, eticamente discutível, pretende transformá-los em escudos humanos que defendam os adultos. Isto quando nos cabe a nós, adultos, o dever de olhar pelos seus interesses.
Entretanto, como aconteceu na Gripe Russa do século XIX, também provocada por um coronavírus que terá saltado a barreira das espécies, o novo coronavírus torna-se endémico. Continuaremos a ter doença, normalmente numa forma mais ligeira (seja porque os grupos de risco estão vacinados, seja porque a doença é normalmente ligeira fora desses grupos). Continuará a haver mortes, por Covid-19, por outras doenças, por acidentes.
Aqui chegados, é hora de colocar um ponto final a medidas restritivas da liberdade, de acabar com testes a assintomáticos sem critério clínico, de rever normas de isolamento profilático, de descartar certificados digitais, de garantir a normalidade do novo ano lectivo e de acautelar o futuro das crianças e jovens. Esta é a única opção política legítima que o governo pode assumir, pois só ela é consentânea com o sucesso que diz ser a campanha de vacinação. De outra forma, os escudos servirão apenas para sermos, todos, carne para canhão ao sabor das decisões de um qualquer déspota.