Há muitas maneiras de esquecer a vaga de ataques jihadistas em França e na Alemanha. Uma é ir para a praia e evitar a imprensa. Outra é convencermo-nos de que uns quantos marginais com camiões e facas podem causar tragédias localizadas, mas nunca abalarão um continente e uma civilização. Mas talvez esta segunda opção seja tão enganadora como a primeira. O que pode o jihadismo fazer à Europa?
As migrações das últimas décadas transformaram as sociedades ocidentais. Esta semana, ouvimos Obama exaltar a diversidade da sociedade americana – mas uma diversidade que comunga na tradição política dos Fundadores dos EUA. Os EUA são uma nação de imigrantes, que em vagas sucessivas adoptaram o patriotismo americano. Mas muita da imigração mais recente em vários países europeus teve outro efeito: a formação de comunidades muçulmanas que, por várias razões, não se identificam com as sociedades de acolhimento.
Em muitas das capitais europeias, os muçulmanos representam já provavelmente entre 10% e 20% da população. O terrorismo inspirado pelo fundamentalismo islâmico tem um objectivo: através do sectarismo e da violência, aprisionar os muçulmanos em comunidades fechadas e hostis aos olhos dos outros europeus. Ninguém mais do que os jihadistas está empenhado em promover a chamada “islamofobia”. A campanha de terror foi toda calibrada para isso. O autor do atentado não é sempre um comando armado chegado da Síria: pode ser o rapaz do andar ao lado, com um camião ou uma faca de cozinha, de modo que todo o muçulmano se torne suspeito. A vítima não precisa de ocupar cargos ou ter responsabilidades: basta estar no lugar errado à hora errada, de modo que todos os cidadãos se sintam ameaçados. O assassinato do padre Hamel na igreja de Saint-Étienne-du-Rouvray tem um sentido: é a tentativa de importação para a França do terrorismo sectário que afundou o Iraque, a Síria ou o Líbano numa espiral de violência entre as suas comunidades. É um facto: a Europa ainda não é o Médio Oriente. Mas já não está separada do Médio Oriente.
O impacto do terrorismo é ainda ampliado de outra maneira: pelo modo como é percebido como parte do pacote da globalização. As elites europeias continuam a acreditar que as populações apenas se interessam pelo conforto material. A globalização favoreceu esse conforto para muitos, mas a circulação de bens e de pessoas também abalou a vida de comunidades até aí assentes numa identidade colectiva e na partilha de certos valores, dentro de fronteiras definidas. Num primeiro momento, a nostalgia de míticas homogeneidades nacionais inspirará contestações “nativistas” e proteccionistas, como os promovidos por Trump nos EUA ou por Le Pen em França. Mas num segundo momento, se o terrorismo alastrar e os europeus começarem a sentir que ir ao concerto ou ao centro comercial se tornou um jogo de roleta com a morte, não é de excluir uma evolução para além do mal-estar e do protesto. Nalguns casos, teremos apoio popular para regimes policiais, como na Rússia; noutros, continuaremos a ter talvez democracias, mas democracias limitadas aos “nativos”, com exclusão das comunidades suspeitas, alvo de medidas de segurança especiais. Sim, os jihadistas podem transformar a Europa. Não convém subestimá-los.
O jihadismo é, em primeiro lugar, uma tragédia para as suas vítimas. Em Março deste ano, em duas semanas, os jihadistas atacaram em seis países e mataram 247 pessoas. O New York Times tentou dar identidades a essas vítimas: nomes, rostos, histórias. Vidas cortadas, famílias destruídas, não apenas em Bruxelas, mas em Ankara ou em Lahore. Não há palavras para essas tragédias. Mas os jihadistas não querem matar só pessoas. Querem também matar sociedades. E é preciso não ter ilusões: as sociedades também morrem. Esta é uma guerra, como tem dito o Papa Francisco. Mas uma guerra é sempre uma coisa que se pode perder.