Na tarde de 26 de Abril de 1974, o major Otelo Saraiva de Carvalho, conforme contou em várias ocasiões, saiu do Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas, no quartel da Pontinha, e terá ido para casa. Era sexta-feira. Na segunda-feira seguinte, voltou à Academia Militar, onde era professor, para dar aulas. Foi então que o comandante o chamou: do Quartel-General, na Cova da Moura, perguntavam por ele. Otelo foi até lá. Ninguém o esperava: “andei lá pelos corredores”. A certa altura, alguém lhe perguntou quem era.

Pouca gente, fora das duas centenas de oficiais envolvidos na conspiração para o golpe de Estado, sabia então quem era Otelo. A 5 de Junho de 1974, mais de um mês depois da revolução, Mário Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros, ainda nunca tinha ouvido falar dele. Do dia 25 de Abril, as reportagens tinham fixado o jovem capitão Salgueiro Maia no largo do Carmo, e televisão, já na noite de 25 para 26, havia posto o país a ouvir o general Spínola. No dia 26, um major, Vítor Alves, lera o programa do Movimento das Forças Armadas. Eram estes provavelmente os nomes e as caras militares que, da revolução, o país e a imprensa tinham retido.

O esquerdismo

Um ano depois, não era só em Portugal que toda a gente sabia quem era Otelo. Eram os leitores de jornais em todo o mundo. Chegara à capa da revista Time, como só Salazar e Spínola antes dele. Tudo acontecera inesperadamente. Ao contrário de Spínola, Otelo não era um grande comandante militar que se tivesse preparado para um dia tomar o poder. Ao contrário de outros oficiais conspiradores, como o coronel Vasco Gonçalves ou o major Melo Antunes, ainda não tinha, em 1974, compromissos de esquerda que lhe indicassem o que devia fazer a seguir. Em Abril, fez o plano operacional do movimento militar porque o capitão Vasco Lourenço, que o devia ter feito, havia sido transferido para os Açores. Em Julho, apareceu como comandante-adjunto do Comando Operacional do Continente (COPCON), dispondo de todas as forças operacionais em Portugal, porque era então um dos poucos oficiais que merecia confiança aos dois grupos em que os militares revolucionários se estavam a dividir, spinolistas e anti-spinolistas.

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O Otelo que em 1975 discutiu a revolução em Portugal com Fidel Castro não era previsível em 1974, tal como aliás a revolução que os dois discutiram. As teorias da conspiração na história quase nunca servem para muito, e neste caso servem para ainda menos. Ninguém estava preparado, e muito menos Otelo. A sua esquerdização é, em grande medida, uma rendição ao “ar do tempo” depois do Maio de 68 e da crise do petróleo de 1973: foi a oportunidade de alguns jovens oficiais, até aí fechados na bolha militar de uma ditadura, partilharem os entusiasmos dos “intelectuais” da sua idade. Mas foi também uma reacção ao impasse em que as forças armadas caíram. A revolução comprometeu as operações militares em África, ao subverter a disciplina e a hierarquia. Para cada vez mais oficiais, tornou-se por isso urgente pôr termo à guerra. Mas a única maneira de acabar rapidamente com a guerra era transferir os territórios e as populações para a ditadura dos partidos armados que, com o  apoio da União Soviética, combatiam a administração portuguesa.

O esquerdismo ajudou os oficiais do exército a encarar esse trespasse do poder com boa consciência: estavam a ajudar a revolução mundial, em vez de estarem simplesmente a negar aos povos africanos o direito a uma auto-determinação democrática. Permitiu-lhes ainda outra coisa: fê-los dirigentes de uma revolução socialista, frequentemente tentados a dispensar ou a menorizar eleições e partidos políticos. Julgaram que em Portugal podia ser como na Guiné, onde as forças armadas, durante a guerra, tinham construído estradas, escolas, clínicas e “desenvolvido” um país. O socialismo em Portugal pareceu-lhes apenas uma questão de voluntarismo militar. O esquerdismo de Otelo teve estas origens e estes limites. Ninguém, de certo modo, representou esse lado da sua geração tão bem como ele. Tinha 38 anos. Muitos dos seus camaradas tinham menos.

A ambiguidade

A certa altura, como conta Diniz de Almeida nas suas memórias, Otelo trouxe um economista para dar ideias aos jovens oficiais revolucionários. Era Leonardo Ferraz de Carvalho, que lhes expôs durante uma hora, no meio de um espanto crescente, não as vantagens do socialismo, como todos esperavam, mas da economia de mercado. Talvez não houvesse aqui apenas distracção. Otelo nunca abdicou de uma certa ambiguidade que era, no fundo, o que lhe dava força, sobretudo pela forma como ele a sabia embrulhar numa bonomia bastante desarmante.

A partir de Março de 1975, com o exílio de Spínola, a chamada “esquerda militar”, que se formara contra o general, dividiu-se de acordo com as conhecidas fracturas da esquerda: sociais-democratas que julgavam poder conciliar o socialismo com uma democracia pluralista, como Melo Antunes; comunistas ou aliados do Partido Comunista, como Vasco Gonçalves e Rosa Coutinho, fiéis a um projecto de tomada do poder através das Forças Armadas, do Estado e dos sindicatos; e esquerdistas revolucionários que desejavam dissolver as Forças Armadas, o Estado, e os sindicatos num festival de “assembleias” populares. Otelo escolheu a última opção. Talvez por deslumbramento pelo que parecia mais “avançado”, mas também por alguma vontade de manter a equidistância política com que se envolvera no movimento militar e que explicava a sua posição no COPCON. Porque a chamada “extrema-esquerda” em Portugal, no Verão de 1975, funcionou de facto, com todo o seu extremismo, como uma espécie de centro, entre a esquerda democrática e o Partido Comunista. Umas vezes com uns, outras vezes com outros. Queriam fazer uma revolução, mas não se queriam submeter a um PCP pró-soviético.

Em 1975, Otelo disse algumas das frases mais sinistras da época. Enquanto comandante do COPCON, foi também um dos principais responsáveis pelo “Estado de não-direito” denunciado e documentado em 1976 no Relatório da Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos Sujeitos às Autoridades Militares: as detenções por tempo indefinido, sem culpa formada e sem assistência judiciária; as ameaças, os maus tratos e a tortura nas prisões; o congelamento de contas bancárias e a decorrente miséria de muitas famílias. No meio disto tudo, porém, conseguiu parecer invariavelmente “ligeiro e inconsciente”, como o caracterizou o embaixador da Bélgica, Max Wery, nas suas memórias. Uma apreciação que, ao aparentemente o diminuir, jogava de facto a seu favor. Convidava a tratar os seus ditos, actos e omissões como irresponsabilidade mais do que como intolerância ou maldade. Fazia dele como que uma espécie de “bom selvagem” da revolução – um manto com que ele aprendeu a cobrir-se com mais habilidade do que lhe é reconhecida.

Contra a revolução comunista

Otelo nunca confiou no PCP, apesar de toda a sedução que Álvaro Cunhal sobre ele tentou exercer. Tocamos aqui, aliás, no segredo que uma grande parte da esquerda revolucionária nunca quis contar sobre Otelo e, já agora, sobre si própria. A única via possível para uma revolução socialista em Portugal, um país da NATO e em transformação económica e social desde os anos 1950, era a do PCP: a infiltração do Estado, à sombra de um regime autoritário militar. A agitação da extrema-esquerda nunca deixou que isso pudesse decorrer com a necessária frieza e eficácia. O PCP foi frequentemente o inimigo principal da esquerda revolucionária e do seu “Poder Popular”.

Nada disso era surpreendente: os comunistas de obediência soviética, como Cunhal, sempre tinham visto o “radicalismo burguês de fachada socialista” como um obstáculo. Para os muitos autodidactas de marxismo que abundavam no país, o conflito era mais do que lógico. Decorria da história, da revolução francesa de 1789 à cisão entre a União Soviética e a China maoísta. Foi de facto Otelo, tanto como os chamados “moderados” (o Grupo dos Nove chefiado por Melo Antunes), quem forçou a demissão do primeiro-ministro Vasco Gonçalves, o principal aliado militar do PCP, em Agosto de 1975. Fê-lo com algum acinte, em carta pessoal tornada pública: “peço-lhe que descanse, serene, medite e leia”. Não resistiu, por interposta pessoa, a ajustar contas com Cunhal, ao aludir ironicamente ao “meu sentido intuitivo e não científico da Revolução” (os comunistas diziam-se então “científicos”, segundo a doutrina marxista-leninista, e acusavam a esquerda revolucionária de radicalismo emotivo).

O VI Governo Provisório, uma primeira tentativa dos “moderados” de “terminar a revolução”, é também, por isso, obra de Otelo. Mas não desejando a tomada do poder pelo PCP, Otelo também não desejava uma normalização democrática. Depois da queda do “gonçalvismo”, o seu COPCON tornou-se o principal factor da revolução no Outono de 1975. O PCP, já sem melhor alternativa, seguiu-o desta vez. No dia 25 de Novembro, enfrentaram a ameaça militar dos “moderados”. Tinham ainda um país mobilizado contra eles pela Igreja Católica, pelo ressentimento do imenso desastre africano e pelas eleições de 25 de Abril de 1975, que tinham exposto comunistas e extrema-esquerda como uma minoria. Nem Otelo nem Cunhal quiseram correr o risco da guerra civil. Depois, trocaram muitas acusações de aventureirismo e de traição. De facto, cada um pelo seu lado, fizeram a mesma coisa: desistiram, confiando na mediação do presidente da república, o general Costa Gomes. Nenhum deles, porém, julgou que a história chegara ao fim. Cunhal ficou com as “nacionalizações” e a “reforma agrária”. Otelo, preso durante uns tempos, ficou com o “25 de Abril”. Foi a partir dessa apropriação simbólica pessoal que pensou retomar a revolução.

A revolução depois da revolução

Em 1975, Otelo impediu, tanto como a Igreja Católica, o PS, a direita, o Grupo dos Nove e as embaixadas ocidentais, a tomada do poder pelo PCP. Em 25 de Novembro, escusou-se a comandar uma “comuna de Lisboa” contra o resto do país. Mas não desistiu da revolução. Ao não desistir, mais do que pôr em causa a “democracia burguesa”, continuou a pôr em causa o PCP. Em Julho de 1976, a sua candidatura às eleições presidenciais vexou a candidatura comunista. Otelo teve quase 800 mil votos (16,4%) contra os 365 mil (7,5%) do candidato do PCP. Houve quem se divertisse a deitar sal para as feridas comunistas, imaginando Otelo à frente de um movimento populista de extrema-esquerda que, a pouco e pouco, secasse o velho PCP pró-soviético, como acontecia nos países do Terceiro Mundo onde as revoluções viviam mais de carisma do que de burocracia.

O PCP, colado ao Presidente da República, o general Eanes, e ao Conselho da Revolução e instalado nos sindicatos e nas herdades ocupadas do Alentejo, resistiu ao que, com desprezo, chamava o “otelismo”. Otelo descobriu que os “cravos de Abril” não tinham o poder dos chaimites do COPCON. Em 1980, era politicamente uma figura marginal. Nas eleições presidenciais desse ano, não passou dos 85 mil votos (1,49% do total) — um décimo do que alcançara em 1976. A extrema-esquerda também não estava melhor: desde 1975 que nunca conseguira eleger mais do que um deputado (da UDP), e em 1983 perdeu-o, até à formação do Bloco de Esquerda em 1999.

Otelo podia ter-se retirado. Não se retirou. Estava agora prisioneiro do caminho que seguira. A extrema-esquerda não podia desligar-se dele, porque continuava, apesar de tudo, a ser a única carta popular do seu baralho; e ele não podia desligar-se da extrema-esquerda, porque uma nova retirada lembraria inevitavelmente a do 25 de Novembro e seria o fim da sua reputação na única área política que o tratava como alguém importante. A outros militares revolucionários de 1975 aconteceu o mesmo.

O Óscar

Entre aqueles que o tinham rodeado de mais perto em 1975, no COPCON, estavam os activistas da “luta armada” de antes de 1974, que depois do 25 de Abril se manifestaram continuamente a favor da tomada violenta do poder, como os dirigentes do Partido Revolucionário do Proletariado/Brigadas Revolucionárias. Em 1980, Otelo apareceu como líder de um novo movimento político, a Frente de Unidade Popular. Tal como a acusação do Ministério Público mais tarde viria a demonstrar, a FUP era apenas a face legal de um projecto cuja face clandestina estava na organização armada Forças Populares 25 de Abril, onde entraram antigos “operacionais” do PRP-BR. Nos anos 1980, as FP-25 importaram para Portugal, de modo algo serôdio, o terrorismo esquerdista europeu, com o mesmo cortejo sórdido de roubos e de assassinatos. Eram a confissão da derrota do esquerdismo revolucionário que em 1975 pontificara sobre o destino do país e que agora acabava na miséria da delinquência.

Em 1984, dez anos depois da revolução de 25 de Abril, Otelo era preso. Nunca lhe conseguiram obter uma confissão. Mas ele também nunca conseguiu sacudir a “responsabilidade moral” que obviamente cabia a quem tivera a importância que ele teve naquele meio. É significativo que tenha dado a entender, por vezes, que o processo foi mais uma tentativa do PCP o liquidar politicamente. Não era apenas uma teoria da conspiração inspirada pelo velho conflito entre a “intuição” e a “ciência” revolucionárias. Era um apelo não demasiado subtil à benevolência de um regime democrático que ele, em 1975, negara em nome do “Poder Popular”, mas que também ajudara, ao recusar a ascendência comunista. A maneira de resolver esse problema esteve em reduzi-lo ao herói do 25 de Abril, o “Óscar” do Posto de Comando do MFA, sem querer reparar que “Óscar” tinha sido também o seu nome no projecto FUP-FP25. Nunca houve dois Otelos, nem Otelo foi, ao contrário do que se disse, uma personagem particularmente contraditória. Tudo nele faz sentido e tem até alguma fatalidade.