A forma como debatemos o efeito da subida dos juros na prestação da casa, o aumento das rendas ou o preço da energia dá a ideia de que estamos com incumprimentos generalizados nos bancos, senhorios sem receberem as rendas e as elétricas com faturas por cobrar. Uma pessoa que estivesse ainda em confinamento e usasse os queixumes como indicador da actividade económica, quando saísse de casa ficaria espantada com os engarrafamentos, a dificuldade em marcar um fim de semana fora de casa ou ir a um restaurante jantar.

O presidente do Santander, Pedro Castro Almeida, foi mais ilustrativo ou gráfico no que disse, mas realmente o conteúdo das suas afirmações não foi muito diferente do que já tinha dito o governador do Banco de Portugal Mário Centeno no início de Dezembro. Já lá vamos à parte do jantar, comecemos pelas confusões em matéria de quem está a ficar sobrecarregado com a prestação da casa.

Disse Mário Centeno, usando um estudo do Banco de Portugal: “é, de certo modo, um mito” que existam muitas famílias com baixos rendimentos e com crédito à habitação, limitam-se a 8,8%. E Pedro Castro Almeida foi no mesmo sentido: reconheceu que há problemas na classe baixa e média-baixa mas “isso não é um problema do crédito à habitação”.

E se formos ver o estudo (pg. 30) do Boletim Económico de Dezembro, que avalia o efeito da subida dos juros e da inflação, podemos ler que “a generalidade das famílias consegue manter um volume de consumo de bens essenciais igual ao de 2021 e satisfazer o serviço da dívida a partir do rendimento corrente, sem pôr em causa outro tipo de despesas”. Concluindo-se ainda que são os mais ricos (rendimentos mais elevados) aqueles que vão enfrentar uma “capacidade de ajustamento mais exigente”, leia-se em linguagem mais simples, terão eventualmente de apertar um bocadinho o cinto para pagar a prestação da casa. O que pode ser, perfeitamente, jantar menos fora ao fim de semana.

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Por via deste retrato vemos que Pedro Castro Almeida apenas teve consigo a força das imagens que usou no que nos disse. Claro que todos percebem melhor quando se diz “não vemos onde está o problema de pagar a casa se continuamos a jantar fora ao fim de semana” do que quando se fala em “capacidade de ajustamento mais exigente”.

Levando em conta os dados, quer do Banco de Portugal como dos bancos, aquilo que podemos concluir é que os queixumes retratam um grupo reduzido de pessoas que anda a tentar que o Estado lhe pague a prestação de crédito à habitação para não ter de reduzir outros consumos, ou, usando as imagens de Pedro Castro Almeida, não deixarem de ir jantar fora. Reajustar consumos não é estar em crise e, de facto, não estamos, pelo menos por enquanto, numa crise. Há emprego e trabalho.

O que esta onda parece revelar é a existência de uma classe média que até se pode considerar alta, urbana, que se viciou em considerar que o Estado nos deve pagar tudo, a água, a luz, o telefone, a casa… Se repararmos, a indignação é maior com o preço da prestação da casa do que com a subida da alimentação que, essa sim, está a ser um flagelo para as famílias de rendimentos mais baixos.

É essa mesma classe média alta urbana, com salários acima da média dos portugueses, que também se queixa da subida das rendas de casa e, desta vez, com ganhos. Pagam os senhorios para o Governo fazer boa figura junto dos arrendatários. (Não, não se está aqui a dizer que as casas são acessíveis para alugar ou para comprar, está a dizer-se que políticas como estas só agravam o problema do arredamento como outras, como os benefícios fiscais a estrangeiros, explicam em parte o preço a que chegaram as casas).

Aquilo a que temos assistido mostra bem como estes últimos anos nos têm criado a ilusão de que o Estado nos pode dar tudo. Das reversões das medidas da troika à pandemia, passando pela mitigação dos efeitos da inflação, tudo se conjugou para criar esta ideia de que há almoços grátis, que “eles” bem podiam ajudar a pagar a prestação da casa. Um vício de mão estendida que serve para conquistar e preservar o poder, e que os governos liderados pelo PS têm levado até aos limites. E depois de se pedir que o Estado pague o que não deve, não é de estranhar que falte dinheiro para as funções essenciais do Estado, da segurança à justiça, da saúde à educação.