É um dos meus momentos preferidos do Verão. Todos os anos, num sábado de Agosto, dois primos nomeados no ano anterior organizam uma reunião de primos na terra dos avós, bisavós e assim sucessivamente. Obrigamo-nos, assim, uns aos outros a regressar a Monfortinho, onde tantos já não têm família directa, mas onde guardam ainda muitas memórias e uma grande raiz familiar. Somos sempre muitos, não contando com os ausentes – a minha avó tinha mais de 20 primos direitos e as respectivas descendências estendem-se largamente. É também aí que voltamos a encontrar a família emigrante, alguns deles já nascidos noutras paragens, filhos de gente que saiu do país com 15 ou 16 anos para trabalhar, e vamos, naturalmente, vendo os mais novos crescer.
Um dos mais novos nasceu e vive na Holanda. Faz 14 anos em breve. Naqueles dias que se seguiram à reunião familiar, entre mergulhos de piscina, imperiais, gelados e passeios de gaivota, soubemos que o rapaz andava ansioso pelo aniversário. A razão era simples: com 14 anos feitos, podia juntar-se aos seus amigos que já tinham atingido a idade legal para trabalhar na Holanda e começar a prestar serviço quatro horas em cada sábado num supermercado da cidade onde vive. Ia continuar a estudar, mas o trabalho ia permitir-lhe ganhar algum dinheiro, contribuir para as despesas da família, poupar e ainda lhe sobrava algum para gastos supérfluos da idade, poupando também os pais a essa despesa.
Não é um feito notável, diga-se. Poderá até parecê-lo para nós, num país onde a criançada aparentemente só pode ganhar dinheiro a trabalhar se estiver a gravar telenovelas, mas o entusiasmo do miúdo foi partilhado pela mãe, minha prima, com algum orgulho, é certo, mas também com uma naturalidade contagiante.
Fiquei a pensar nisto. E lembrei-me de um episódio com três anos, poucos meses depois do início dos confinamentos decretados pelos Governos do mundo para ver se um vírus se ia embora, vendo que não havia ninguém na rua. Em Julho de 2020, António Costa andava, de cabeça baixa e mão estendida, a percorrer a Europa, reunindo-se com os líderes dos outros Estados-membros, resumidamente a pedir esmola. O périplo terminaria com a boçal pergunta do Primeiro-ministro à presidente da Comissão Europeia, uma vez recebido o cheque, sobre se já podia ir ao banco no dia seguinte, e teve ainda passagens memoráveis como uma sabujice prestada a Órban, quando António Costa para aí afirmou que a Hungria não podia ficar sem fundos europeus só por causa daqueles pormenores sem importância das falhas no seu Estado de Direito. Outro dos momentos dessa jornada de pedinte deu-se precisamente na Holanda, com uma vénia muito simpática, muito diplomática e também muito pelintra a Mark Rutte.
Meses antes, logo nos primeiros tempos de confinamento, Wopke Hoekstra, ministro das Finanças holandês, tinha sugerido que a Comissão Europeia devia investigar países, como Espanha, que afirmavam então não ter margem orçamental para lidar com os efeitos da crise provocada pelos lockdowns, quando a zona euro estava em crescimento há sete anos consecutivos. Costa insurgira-se contra as declarações, fora mesmo contundente, tratando-as como declarações repugnantes. E, para consumo interno, dentro e fora dos estúdios de televisão, teve ali o seu momento de glória em prol da unidade europeia. Mas, passada a propaganda para comentador repetir, extasiado o eleitor com a fibra do seu chefe, António Costa lá ia ter com Rutte, Primeiro-ministro holandês, pedir os devidos dinheiros.
O momento era curioso, de facto. Em tempos, Vítor Gaspar, ministro das Finanças do tempo de Passos Coelho, tinha sido fotografado a conversar com o homólogo alemão de então, Wolfgang Schäuble, que, como é sabido, usava uma cadeira de rodas para se mover. Gaspar tinha cometido a imprudente delicadeza de se baixar para conversar com o alemão. E António Costa, uma espécie de conde de Abranhos com melhor berço, chegou mesmo a anunciar, tempos depois, de ventre inchado, todo ele ufano, e sem se referir concretamente ao episódio, que os tempos em que os ministros portugueses se ajoelhavam aos pés dos alemães tinham, com ele, terminado.
Enfim, menos de dez anos depois de estendermos a mão da pobreza, na sequência da bancarrota, Costa voltava ao mesmo, cheio de sabujice para com os holandeses. À saída do encontro com Rutte, um homem que, sendo Primeiro-ministro, vivia ainda no seu apartamento de estudante, Costa sorria, prestando declarações aos jornalistas, antes de entrar num tradicional carro preto de pessoa importante. Rutte saiu de bicicleta.
Há, entre nós, o país que Costa ali representava e o outro, que emigra ou, ficando, que desiste. É uma cisão entre o país que ambiciona e trabalha por mais e o outro, que espera que os outros façam e paguem por si, e que se revela sempre que falta dinheiro. Esta última é, afinal, a predisposição maioritária, como as eleições vão demonstrando: a vontade quase generalizada de um país que quer pagar com o dinheiro dos outros os luxos e os direitos dos europeus mais desenvolvidos, sem fazer o que precisa para lá chegar sozinho. É como se achássemos sempre que são os mais ricos quem tem de esperar por nós, em vez de termos de ser nós a acelerar para os alcançar. Mergulhado numa piscina em Monfortinho, olhei para o meu primo e vi ali um miúdo de 14 anos luso-holandês a dar uma sova moral ao país onde passa férias.