A 8 de Abril de 1987 o chefe da unidade de SIDA do Centro Médico Académico de Amsterdão anunciou que tinha sido praticada eutanásia a 12 pessoas. Essas 12 pessoas, talvez algumas mais como se perceberia depois, estavam todas infectadas com o vírus da SIDA. Sven Danner, o médico que chefiava a unidade de SIDA do Centro Médico Académico de Amsterdão, explicou que dois desses infectados com SIDA tinham morrido num hospital em consequência da administração de uma dose letal de medicamentos e que “pelo menos outros dez” morreram em casa, depois das respectivas famílias terem solicitado uma “morte misericordiosa”.

Os jovens doentes de SIDA surgiam nos anos 80 como o grupo mais destacado daqueles para quem os defensores da eutanásia defendiam o “direito a disporem das suas vidas” que eram apresentadas invariavelmente como indo terminar a breve prazo: Shaun Mellors um sul-africano a quem foi diagnosticada SIDA em 1986 recordava, em 2018, como 32 anos antes lhe tinham dado seis meses de vida. Esses doze cidadãos holandeses dispuseram das suas vidas – ou seja foram eutanasiados – para evitarem o que então era apresentado como o futuro mais que certo para as pessoas afectadas pela SIDA: um sofrimento atroz que acabava numa agonia ainda mais atroz. Ou aquilo que então e agora é apresentado pelos defensores da eutanásia como uma “doença incurável e irreversível”.

Ora nesse mesmo ano de 1987 em que alguns médicos holandeses reivindicavam e praticavam a eutanásia em infectados com o vírus da SIDA, um medicamento, o AZT, apresentou pela primeira vez resultados positivos quando administrado a doentes infectados com o temível HIV. A introdução dos antiretrovirais em 1995 alterou ainda mais a perspectiva desta doença como um fim iminente e terrível que assombrou os infectados e as suas famílias nos anos 80. Fazer da SIDA uma doença crónica deixou de ser uma miragem: hoje os infectados com SIDA desde que diagnosticados a tempo e tratados adequadamente têm uma esperança de vida aproximada da dos não infectados.

Voltemos então a 1987 e perguntemos: quantos anos mais poderiam ter vivido alguns desses doze infectados com o vírus da SIDA se em vez da opção pela eutanásia tivessem sido tratados com o AZT? Hoje claro a história destes doze infectados com HIV que foram eutanasiados está arredada da discussão pois compromete a versão da eutanásia como a solução misericordiosa quando nada mais há a fazer. E da mesma Holanda que em 1987 via como um acto de solidariedade a liberalização da eutanásia para os infectados com SIDA chegam agora notícias sobre a nova conquista: a disponibilização de uma pastilha letal para os que, tendo ultrapassado os 70 anos, estejam cansados de viver. Ou, mais provavelmente acrescento eu, para aqueles com mais de 70 anos de quem os seus parentes ou as instituições a que estão a cargo estejam cansados.

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Apresentada invariavelmente como o direito das pessoas a disporem das suas vidas, a eutanásia acaba a tornar-se quase sempre no direito doutros ou dos estados a disporem da nossa vida num momento em que, pela doença e fragilidade, dificilmente somos capazes de fazer valer a nossa vontade. A experiência holandesa e particularmente a belga de prática da eutanásia mostram como o conceito de “sofrimento insuportável” tem permitido por termo à vida de crianças, doentes mentais, pessoas que deixaram de querer ser eutanasiadas e até aquelas que nunca ponderaram tal opção mas cuja vida foi considerada sem sentido. E sobretudo, o que está a acontecer na Bélgica não nos deixa esquecer como, perante os argumentos do progresso e do sanitarismo, as sociedades normalizam o que consideravam crime.

Em Portugal, partidos minoritários como são o PAN, a IL e o BE apresentaram agora propostas para a legalização da eutanásia. Pode (e na minha opinião deve) discordar-se das propostas apresentadas por estes partidos mas note-se que eles não enganaram ninguém: o assunto consta dos seus programas. O que não se entende nem pode aceitar é que partidos como o PS e o PSD, que não têm a eutanásia nos seus programas, que não tiveram a coragem de apresentar o assunto à consciência dos seus eleitores, se digam agora legitimados para votar a eutanásia após afectarem uns espantosos 157 minutos de discussão ao assunto. Não, não estou a delirar, segundo o site do parlamento, na tarde do dia 20 de Fevereiro os partidos apresentarão os seus argumentários em 157 minutos, votando em seguida o que definem como “antecipação da morte” (BE); “morte medicamente assistida” (PAN); “prática de eutanásia não punível” (PS) e “as condições em que a morte medicamente assistida não é punível” (PEV). Depois ala que se faz tarde e os senhores deputados têm de ir brincar ao Carnaval. Aceitar que os deputados decidam no dia 20 de Fevereiro, sobre a eutanásia é pactuar com a cobardia do PS e do PSD e com a ditadura da agenda imposta pelas minorias. E sobretudo é aceitar que uma classe política que não consegue assegurar um SNS digno, uma justiça digna, transportes públicos dignos, uma escola digna, uma sociedade digna, enfim uma vida digna esconda o seu falhanço através do frenesi das causas fracturantes: num dia querem salvar o planeta; no outro dedicam-se às questões de género e no outro ao que calhar. Face à leviandade cruel subjacente a esta forma de exercer o poder ou melhor dizendo de o garantir, que agora nos leva a esta votação da eutanásia como se de um banal regulamento se tratasse, as palavras de António Variações tornam-se urgentes: “Vou viver/ até quando eu não sei/ que me importa o que serei/ quero é viver.”

PS. A semana de 17 a 21 de Fevereiro tem vários momentos em que os deputados se propõem legislar sobre o que não houve coragem de colocar à discussão dos eleitores como é o caso da eutanásia ou até sobre aquilo que os portugueses discutiram e rejeitaram como acontece com a regionalização: a 19 de Fevereiro, PCP e BE levam ao parlamento projectos de resolução que visam relançar o processo da regionalização, através da calendarização da criação das regiões administrativas. Serão estes projectos chumbados? Talvez mas não duvido que na AR há muita gente que aposta na imposição da regionalização como uma inevitabilidade através da aprovação deste tipo de calendários. Não é só no futebol que se ganha na secretaria o que se perde no campo!