Os pecados capitais pertencem à nossa tradição moral e espiritual. Enquanto os crentes os apreendem como ofensas a Deus, os não crentes consideram-nos faltas morais graves. Para uns e outros, pecar é fazer mal de forma voluntária, consciente. Reflectir sobre os pecados capitais hoje, num contexto de terrorismo, implica necessariamente uma actualização do enunciado feito e assinado pelo Papa Gregório Magno, no final do século VI, acrescentando pelo menos o fanatismo. Haverá outros associados a este, como a crueldade e o sadismo, mas o pecado do fanatismo obriga-nos a examinar as suas origens por revelar uma estratégia de construção mental de personalidades paranóicas, capazes de matar e morrer em nome de um ideal ou uma crença.

Amaldiçoar o inimigo e santificar a destruição permite aos fanáticos cometer massacres hediondos, iniciar e perpetuar guerras religiosas, multiplicar os atos de terrorismo, matar inocentes e fazer muito mal, invocando sempre muito bem. Sabemos que em nome da fé se praticaram crimes pavorosos ao longo dos séculos, e ninguém ignora os efeitos devastadores dos fundamentalistas de todos os tempos. Da Inquisição a toda e qualquer forma de totalitarismo, do 11 de Setembro aos atentados de Paris, fica-nos a certeza de a fé ter feito mais vítimas que a cobiça. O fanatismo situa-se na esfera da convicção e parte da certeza de possuir a verdade absoluta, para se transformar rapidamente num dogmatismo violento baseado no ódio e na intolerância. Todos os fanáticos estão demasiado seguros da sua verdade para tolerarem a verdade dos outros. Jean Cottraux, psiquiatra francês que há décadas se debruça sobre estas matérias (seguramente sabendo que o seu país poderia ser alvo de destruição para terroristas fundamentalistas) explica como se cria esta espécie de robots humanos, dispostos a tudo e preparados para se fazerem explodir.

“O corte radical com o mundo exterior, a exaltação de um ideal, a diabolização incessante do inimigo, a glorificação do sacrifício por uma causa e a privação do sono, bem como a anulação da possibilidade de uma personalidade própria” são os princípios rigorosos de uma técnica infalível de lavagem cerebral. Se a esta ‘estratégia de seita’ se associarem certas predisposições psíquicas como as das personalidades paranóicas, as fortes tendências para a megalomania e a mania da perseguição, obtêm-se exterminadores verdadeiramente implacáveis. Pessoas frias como estes jovens terroristas de Paris, capazes de entrar de cara descoberta num recinto onde estão milhares de jovens como eles, e agir como máquinas. Matar olhos nos olhos, de forma discricionária e puramente assassina. É importante saber que do ponto de vista da psicanálise freudiana um fanático é sempre alguém que pretende a todo o custo combater as suas próprias inseguranças, tem medo do mundo exterior, sente-se constantemente ameaçado e revela uma incapacidade para lidar com a realidade, que se recusa a assumir. Por isso mesmo, socorre-se de um código de conduta maniqueísta, onde só existem bons e maus, amigos e inimigos. O problema é que perante este enunciado patológico aumentam ainda mais os nossos medos e inseguranças, porque tudo nos diz que o mundo está cheio de tarados triunfalistas que acreditam obsessivamente estar acima da condição humana, imunes a todas as suas (nossas!) frustrações e limites. Toda esta realidade é assustadora e também por isso nos interpela o outro lado desta mesma humanidade. O lado onde todos os dias se erguem pessoas capazes de apontar caminhos de tolerância, perdão e conciliação, que nos fazem acreditar que este mundo ainda é um lugar possível.

Excepcionalmente hoje quebro a minha regra dos três parágrafos para deixar aqui a citação do testemunho de Isobel Browdery, sul-africana que se fingiu morta durante mais de uma hora para conseguir sobreviver à chacina de Paris. Mais do que relatar o terror que viveu, Isobel sublinha os gestos de coragem e os actos heróicos: “os meus agradecimentos vão para o homem que colocou a sua vida em perigo para tapar a minha cabeça enquanto eu chorava; para o casal que trocou palavras de amor e me fez acreditar que há bondade no mundo; para o polícia que conseguiu resgatar centenas de pessoas; para os desconhecidos que me ergueram da estrada e me consolaram durante 45 minutos, numa altura em que me convenci de que o rapaz que amo tinha morrido; para a mulher que abriu a porta da sua casa aos sobreviventes. Vocês fazem-me acreditar que este mundo pode ser melhor.”

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