Cada vez me é mais prazeroso conhecer o passado. O nosso passado enquanto humanidade, cujas ações – ilimitadas na sua variedade e criatividade, no seu sucesso e falhanço; limitadas ao espaço que o palco lhes deu e no tempo que o seu começo e término balizou – compõem a História. Longe vão ficando os tempos em que, de forma puerilmente ignara, via a História de uma perspetiva arqueológica, arredada do condão de iluminar o presente e de identificar possíveis avenidas do amanhã.

Ler é uma das pesadas maquinarias que permite erguer essa ponte intertemporal entre os que viveram o ontem; os que, hoje, o estudam; e os que, hoje ou amanhã, o passam a conhecer. E a ler encontrava-me eu nessa confinada e alvadia manhã de domingo passado.

Mais concretamente, a ler M – O Filho do Século, biografia ficcionada sobre Benito Mussolini, escrita por Antonio Scurati. Concluído o curto capítulo que introduz Amerigo Dùmini, chegara a altura de um nada pensativo cigarro.

Um descomprometido cigarro acompanhado das notícias da anterior noite que o sono tivera escondido. Um descomprometido cigarro velozmente transtornado em virtude das desvirtuosas e alucinantes palavras de Francisco Ramos. O fumo era incapaz de dar corpo a tamanha estupefação.

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Nascido nos Estados Unidos, Amerigo Dùmini, entretanto mudado para Itália, juntou-se, em 1913, ao exército que viria, em breve, a combater na I Guerra Mundial. Alistou-se nas tropas de assalto – Arditi – formadas no verão de 1917 com o intuito de trazer um pouco do combate corpo-a-corpo a essa guerra de trincheiras. Foi um dos muitos arditi a quem Mussolini conseguiu cativar; basear, inclusive, parte da força de que necessitara para dar elã ao movimento fascista na primavera de 1919.

Amerigo Dùmini, um dos fundadores do Fascio de Florença, ia, segundo o que descreve Scurati, a arrastar-se até à Confraria da Misericórdia dessa cidade para obter algum bálsamo para as suas enfermidades da guerra. Dono de um passo coxeante, é avistado e identificado, devido à farda envergada, por um grupo de calceteiros que o insultam. “Assassino!”, terão gritado. Amerigo retorquiu, tendo sido depois agredido pela meia dúzia de trabalhadores que lhe arrancaram as divisas de ardito para depois lhas enfiar na boca. Tempos divisivos viviam-se no pós-guerra, onde os milhões de mortos deixavam em confronto intervencionistas e seus opositores.

Francisco Ramos (o coordenador) explanou, em entrevista à SIC Notícias, que os cidadãos que impropriamente receberam a primeira dose da vacina irão, devidamente, receber a segunda. Aparece-me como acertada a decisão e clara a respetiva justificação.

Francisco Ramos (o comentador) não resistiu, na mesma entrevista, a lançar uma provocação à laia de julgo: “Essa pergunta explica um pouco aqueles 11% ou 12% nas eleições presidenciais do passado domingo, um espírito vingativo que não me parece que seja muito bom para uma sociedade solidária como a nossa.” O comentador e o episódio dessa sinistra figura do fascismo, o Sicario Del Duce, cruzam-se num ponto: Francisco Ramos amarrotou os boletins de voto de 496.768 Portugueses e enfiou-os nas bocas desses eleitores, dando o seu valioso contributo para a causa de André Ventura.

Francisco Ramos (o comentador) esqueceu-se da posição de destaque que Francisco Ramos (o coordenador) ocupa na atualidade portuguesa. Esquecido, ou bastante iludido, acerca dos temas que os Portugueses aguardam ver esclarecidos através das suas palavras e ações. Francisco Ramos não é um comentador ou analista político (felizmente!, pois demonstrado está que não traria nada de novo nem de assinalável).

Não tendo eu conhecimento para discernir a respeito da competência de Francisco Ramos para o cargo (o de coordenador) que exerce, é-me possível inferir que é incompetente em avaliar a importância da sua função para todos os Portugueses que dele, de certa forma, estão dependentes. Até daqueles 11% ou 12% de que tão facilmente desdenha e menospreza.

Dando a cara por um assunto tão delicado, e que por si acarreta já evidentes riscos de divisão na sociedade portuguesa – veja-se, a título de exemplo, a questão da vacinação de deputados como a socialista Maria Begonha, de 32 anos –, Francisco Ramos (o comentador) saca das pinças e alarga as bordas da ferida que tantos abutres, da esquerda à direita, têm nela debicado. Francisco Ramos (o coordenador) poderá, então, não estar à altura do cargo.

Na verdade, Francisco Ramos (o coordenador e comentador) limitou-se a seguir o que tem sido a ignorante e anedótica reação dos muitos que ousam traçar um perfil psicológico de quase meio milhão de pessoas recorrendo a uma cruz num boletim de voto. A uma cruz em alguém tão difuso e esquivo quanto à sua matriz ideológica, o que torna o exercício ainda mais inócuo. A esses, um pedido: parem, por favor.

Doutas e ilustres figures de proa da política, parem, por favor, de cavar esta trincheira entre Portugueses. Não alimentem a necessidade de tropas de choque para combates corpo-a-corpo. Parem de dividir um país onde o separatismo não reina. Parem, por favor, de ser oportunistas e simplistas.

Coqueluches da nova vanguarda marxista parem, por favor, vocês também. Cronistas que pensam, e tal o refletem num tweet, que os eleitores estiveram mal nas eleições presidenciais, como Carmo Afonso. Híbridos que se moldaram entre um “ativismo” – pelo que agremia mais likes, basicamente – e a comédia, como Diogo Faro. Parem de vociferar a diferença, de explorar o ódio. Deixem o ódio para os vossos adversários, que deverão, e serão, combatidos e refutados com recurso à discussão serena. Inspirem-se nos debates que opuseram Tiago Mayan e Marcelo Rebelo de Sousa a André Ventura. Parem, vocês, os iluminados pela graça da imutável clarividência moral e ética, com isto. Ou façam, de facto, uso dessa superioridade e tragam-na finalmente a terreiro.

Continuem a pintar os lábios de vermelho. Mas parem, por favor, de ensanguentar a vossa visão com essa cor.