Cerca de 30 anos após a queda do Muro de Berlim (Nov. 1989), o fim da Guerra Fria (Dez. 1989) e a dissolução da União Soviética (Dez. 1991), será talvez instrutivo revisitar as análises, à época, de três académicos americanos: Francis Fukuyama, John Mearsheimer e Samuel P. Huntington.

Por dois motivos. Em geral, porque representam visões diferentes das relações internacionais; em particular, porque tratam do destino da Europa e permitem especular sobre as relações Rússia-Ucrânia.

Poderíamos dizer que foi Fukuyama, um liberal, a iniciar as hostilidades. Com o final da Guerra Fria (Cimeira de Malta), a elite americana procurava posicionar-se para um sonhado mundo unipolar. Fukuyama proclama “o triunfo último da democracia liberal ocidental e a vitória inequívoca do liberalismo económico e político: o triunfo do Ocidente”. Assistimos, diz, “não apenas ao fim da Guerra Fria, mas ao fim da história como tal. A universalização da democracia liberal ocidental” (Fukuyama, F. (1989). The End of History? The National Interest, 16, 3–18). Chegados a este fim da história, a este estado homogéneo universal, Fukuyama reduz o conflito entre as potências à actividade económica. Actividade económica, de um único tipo, o capitalista, já que a de tipo socialista se ia vendo progressivamente abandonada, ao longo dos anos 80, “pela União Soviética e pela China, cujas elites e líderes tinham optado pela via protestante de riqueza e risco, em lugar da via católica de pobreza e segurança” (Fukuyama, ibidem).

A morte do marxismo-leninismo, na China e na União Soviética, teria criado as condições para um “crescimento da importância do mercado nas relações internacionais, e uma diminuição da probabilidade de conflitos de larga escala entre estados” (Fukuyama, ibidem). Estava assim criada a Pax Mundi, o substrato desse novo mundo unipolar e pacífico. Um mundo que os EUA dominariam, como senhores únicos. Um mundo global no qual o conflito é substituído pela concorrência. Um mundo que é um mercado!

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Como um adulto que abandona a adolescência, ou como um velho que recorda tempos idos, Fukuyama termina The End of History? despedindo-se do velho mundo:

“O fim da história será um tempo muito triste. A luta pelo reconhecimento, a predisposição para arriscarmos a própria vida por um objectivo abstracto, a luta ideológica universal que requeria audácia, coragem, imaginação e idealismo, será substituída pelo cálculo económico, pela interminável resolução de problemas técnicos, pelas preocupações ambientais, e pela satisfação da sofisticada procura do consumidor. No período pós-histórico não haverá nem arte nem filosofia, apenas o perpétuo trabalho do curador do museu da história humana” (Fukuyama, ibidem).

É pelo menos surpreendente que neste seu artigo Fukuyama não pense uma única vez na Europa. Há um mundo bipolar, que vem do final da II Guerra Mundial, e que estaria a transformar-se num mundo unipolar. Contudo, toda a possibilidade de multipolaridade estaria excluída. Fukuyama retira da equação a Albânia ou o Burquina-Faso, com a justificação de que estes “não fariam parte da herança comum da humanidade” (Fukuyama, ibidem). Sobre o Ocidente cristão, das duas uma, ou se esqueceu da conflituosa história dos povos europeus, subestimando o impacto da eventual próxima dissolução da USSR ou, num truque de magia transatlântica, viu a Europa Ocidental como uma extensão de facto de Washington!

Um outro académico, John Mearsheimer, em Chicago, na esteira do assim chamado neo-realismo, analisa a instabilidade na Europa após a Guerra Fria. Mearsheimer vê o fim da Guerra Fria no cenário de uma retirada do armamento soviético da Europa Ocidental, com as forças estacionadas na Alemanha a revelarem-se desnecessárias, e a dissolução tanto da NATO como do pacto de Varsóvia. Considera então, para a Europa, os possíveis desenvolvimentos da substituição de um mundo bipolar por um multipolar. E vê guerra. Suspeita que a paz não possa ser miraculosamente preservada pelos efeitos conjugados da ordem económica liberal e das democracias liberais.

Daqui, parte Mearsheimer para a análise da proliferação nuclear na Europa… mas não além da Alemanha. A Alemanha e a Rússia passariam a ser as grandes potências da Europa. Entre estas grandes potências e as restantes pequenas potências, estabelecer-se-ia um mundo multipolar baseado nos desequilíbrios (imbalances) relativos de poder. A “estrutura anárquica do sistema internacional” fomentaria o conflito e, no contexto em que “a diplomacia é um processo incerto, a guerra poderia acontecer por erro de cálculo”.

“A guerra é mais provável quando um estado subestima a vontade do estado opositor de se manter firme nas questões de diferença. Pode com isso afastar demasiado o outro estado, esperando que ele conceda, quando de facto o opositor escolhe lutar” (Mearsheimer, J. J. (1990). Back to the Future: Instability in Europe after the Cold War. International Security, 15(1), 5–56).

Uma previsão que assenta bem ao presente conflito Rússia-Ucrânia. Mearsheimer acredita que o destino da Guerra Fria está nas mãos da União Soviética, que esta é a única superpotência que pode pôr em causa a Europa, e que será mesmo a ameaça daquela a manter o cimento da NATO. Consequentemente, a melhor forma de, segundo ele, se conseguir sustentar a paz numa Europa multipolar seria a proliferação nuclear. É a doutrina da dissuasão transportada para uma Europa desocupada da presença militar quer da NATO, quer do Pacto de Varsóvia. Interroga-se até que ponto deveria ser permitida a proliferação de armas nucleares? E responde: “seria melhor que a proliferação fosse estendida à Alemanha, mas não além” (Mearsheimer, ibidem). Mais tarde, perante o colapso da União Soviética, equaciona mesmo a vantagem da Ucrânia manter o seu arsenal nuclear, pelo menos o estratégico, como forma de dissuasão (Mearsheimer, J. J. (1993). The Case for a Ukrainian Nuclear Deterrent. Foreign Affairs, 72(3), 50–66).

Tendo sucedido a reunificação da Alemanha (1990) e a dissolução da União Soviética (1991), Samuel P. Huntington publica, em 93, o artigo The Clash of Civilizations? Este é entendido como a resposta do académico de Harvard, um realista, à posição liberal expressa por Fukuyama. Para Huntington “a fonte fundamental de conflito neste novo mundo não é nem principalmente ideológica, nem principalmente económica” (Huntington, S. P. (1993). The Clash of Civilizations? Foreign Affairs, 72(3), 22–49). Ao invés, os principais conflitos da política global passariam a ocorrer entre nações e grupos de diferentes civilizações. Por civilização, entende Huntington, “a forma mais lata de pertença e identidade cultural de um grupo, imediatamente antes daquilo que distingue humanos de outras espécies”. Tal como Fukuyama, vê “nos processos de modernização económica e evolução social um enfraquecimento do estado-nação como fonte de identidade”. Mas, contrariamente ao optimismo da vitória última da democracia liberal de Fukuyama, Huntington receia que os esforços do Ocidente para “promover os valores da democracia e do liberalismo como valores universais”, como vista à prossecução do seu predomínio militar e ao avanço dos seus interesses económicos, leve a uma resposta por parte de outras civilizações. Antevê assim uma nova era de “conflitos ao longo das linhas de fractura das civilizações, e de competição entre estados de diferentes civilizações pelo aumento relativo dos poderes militar e económico” (Huntington, ibidem).

As fronteiras da Guerra Fria na Europa seriam assim substituídas pela linha de fractura civilizacional entre a cristandade ocidental, por um lado, e a cristandade ortodoxa e o Islão, por outro. Esta linha de fractura, sugere ele, coincide com fronteira Leste da cristandade ocidental em 1500. [Ver Mapa]. Significativamente, esta linha cruza a Ucrânia, separando a parte ocidental, uniata (igreja ucraniana greco-católica), da parte oriental, ortodoxa (igreja ortodoxa ucraniana). De acordo com o seu modelo de choques entre civilizações, e sendo tanto russos como ucranianos, eslavos ortodoxos, Huntington não antecipa forte probabilidade de conflito entre eles.

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Contudo, em The clash of civilizations and the remaking of world order, de 1996, Huntington elabora mais dois possíveis cenários para o desenvolvimento das relações entre Ucrânia e Rússia. Um segundo cenário, mais provável que o anterior, seria “a separação da Ucrânia, ao longo da linha de fractura, em duas entidades distintas, sendo a parte Oriental incorporada na Rússia”. Acredita, no entanto, que “a viabilidade da outra parte, a de uma Ucrânia uniata ocidentalizada, só seria possível com um apoio forte e efectivo do Ocidente”. O terceiro e mais provável cenário, diz, é o da “continuação de uma Ucrânia una, dilacerada, independente, e em geral cooperante com a Rússia”. Acrescenta ainda que, tal como as relações franco-alemãs são o núcleo da União Europeia, “as relações russo-ucranianas são o cimento essencial à unidade do mundo ortodoxo” (Huntington, S. P. (1996). The clash of civilizations and the remaking of world order. Simon & Schuster, New York).

Em jeito de conclusão, diríamos que estas três análises falham, a diferentes níveis, nas suas previsões específicas. O mundo pós Guerra Fria não é, à maneira de Fukuyama, o mundo unipolar e pacífico, comandado por uma democracia liberal tornada universal, e no qual todo o conflito foi substituído pela concorrência económica. Mearsheimer vê o mundo bipolar dar origem a um mundo multipolar, com a possibilidade de um recrudescimento dos conflitos entre os estados-nação da Europa. Falha, no entanto, na previsão da dissolução da NATO (pelo menos até ao dia de hoje) e na proliferação das armas nucleares na Europa, sobretudo no que respeita à Ucrânia. Já Huntington, embora veja a linha de fractura entre a cristandade ocidental e a cristandade ortodoxa dividir a Ucrânia, falha ao considerar o conflito Rússia-Ucrânia como o menos provável dos seus três cenários para o futuro das relações russo-ucranianas.

Isto mostra a fragilidade preditiva das teorias das relações internacionais. Contudo há algo de fundamentalmente correcto, embora contraditório e não decisivo, na análise de cada uma delas. O mundo está certamente mais multipolar. A concorrência económica pacífica não substituiu o conflito entre as potências. Pelo contrário, parece antes que a concorrência económica se transformou na arma de eleição do conflito. A Europa não avançou na proliferação nuclear como medida de dissuasão, mas a invasão da Rússia não teria provavelmente acontecido se a Ucrânia detivesse armas nucleares. A reunificação da Alemanha e o seu inquestionável poder económico, não a tornaram numa grande potência europeia, pelo menos enquanto a Europa Ocidental estiver dependente da América para a questão da dissuasão nuclear. Por último, o enfraquecimento do estado-nação é uma realidade, mas não parece que isso se deva ao facto de as fracturas civilizacionais terem vindo a substituir as questões económicas como fonte principal do conflito.

No centro do conflito dos nossos dias está um capital financeiro que ilude as fronteiras dos estados-nação. Que não se submete nem a ideologias, nem a civilizações. Um capital que é sobretudo dívida e que não sabe como se livrar dela. Tão mais fácil seria para nós que as fronteiras de Berlim estivessem o mais próximo possível da nossa dívida externa! Mas, infortúnio, a dívida de todos é a riqueza dos Musk. Tudo se joga nas bolsas. As poupanças de todos estão nas mãos de uns poucos, e a guerra é a única forma de manter a ilusão de que o dinheiro não é tudo.