“Tudo me atinge – vejo demais, ouço demais, tudo exige demais de mim”, escreveu Clarice Lispector, escritora brasileira, judia nascida na Ucrânia em 1920, no auge da devastação provocada pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolução Bolchevique. Tal como muitas outras famílias judias, também a família de Clarice foi atingida pelos terríveis progroms. A mãe foi barbaramente violentada e o pai maltratado e vergado, mas não quebrado. A certeza de que as suas três filhas pequenas precisavam dele para sobreviver deu-lhe forças para resistir. E também Mania, a sua mulher muito amada e para sempre torturada, continuava a ser razão de existir.

Clarice, recém-nascida, não viu o que as irmãs viram, não assistiu ao que os pais assistiram, mas viveu uma vida inteira marcada pelo horror das perseguições e pela dor agravada de sua mãe. Pela impotência de a ver morrer tristemente em cada dia sem a poder resgatar do passado vivido por todos os judeus da Ucrânia, quando cerca de duzentos e cinquenta mil foram mortos, num extermínio que ficou dramaticamente conhecido pelo segundo pior episódio anti-semita da história. O Holocausto haveria de ser o pior de todos.

Se agora volto à biografia de Clarice Lispector é porque acabo de conhecer as histórias de três jovens mulheres cuja infância foi vivida num cúmulo de dores e temores, perplexidades e sentimentos de impotência. Tal como Clarice, nem todas sofreram na pele os abusos que viram outras sofrer, felizmente, mas ao seu lado, em suas casas e nas casas de vizinhas e primas, irmãs e amigas, muitas mulheres foram e continuam a ser maltratadas. Castigadas e humilhadas por serem simplesmente mulheres. Raparigas muito novas, algumas delas.

Começo pela Iva, 22 anos, uma comunicadora nata. Apresenta-se em palco com coragem e determinação. Leve e alegre, usa o sentido de humor para se fazer ouvir, mas a sua história é pesada e dolorosa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

– Boa tarde! – diz com voz forte. Ninguém responde. E, no entanto, há mais de quinhentas pessoas no auditório. Boa tarde, insiste ela com voz mais alta, para ter resposta. Teve, mas foi um eco que chegou muito desfasado e quase a pedido. É pena, porque aquilo que a Iva vem partilhar merecia uma plateia calorosa e acolhedora.

– Procurei uma frase inteligente para começar a minha história, mas não encontrei a que queria entre filósofos e pensadores que todos conhecemos. Como gosto muito de boxe e eu própria vou à luta, vou citar Rocky Balboa, quando disse: “não importa as vezes que ficamos KO, importa as vezes que nos levantamos!”. Esta é a minha atitude na vida, e se agora levanto a minha voz é porque outros precisam de ser ouvidos. Mas eu não quero ser aquela que fala em vez das outras, eu quero é que todas as mulheres, todas as raparigas, especialmente as que mais sofrem, tenham a sua própria voz!”.

Iva contou como foi a sua infância e adolescência, passadas a assistir aos maus tratos infligidos na sua mãe, dentro da sua própria casa, numa família onde não havia paz, apenas guerra.

E muitas vítimas que nunca conseguiram sarar as suas feridas.

Iva viu tudo isto com os seus próprios olhos.

Aos 16 anos, Iva tomou uma decisão radical: “nunca mais vou ficar a assistir, impotente, à crueldade dos homens sobre as mulheres!”. Começou a praticar boxe e a lutar para evitar que outras meninas como ela fossem vítimas precoces. Também passou a ensinar esta forma de combater, para que mais raparigas tenham o poder de se defender. Para que o sofrimento de sua mãe e de tantas outras mães não tenha que se perpetuar nas suas filhas.

“Eu luto e grito, ajo e estudo para que as mulheres do meu país possam ser livres, felizes e capazes!”. Iva tem pouco mais de 20 anos e é moçambicana. Diz que não se importa de ser um pequeno grão de areia no deserto, porque sabe que até o maior deserto é composto por minúsculos grãos de areia. Com a mesma alegria e leveza com que chegou, terminou a sua talk e agradeceu à audiência, que finalmente está desperta e se levanta em peso para a aplaudir de pé.

Iva é apenas uma de trinta e uma pós-universitárias que atualmente frequentam o Programa CHANGE da Girl MOVE Academy, em Nampula. Fiz voluntariado nesta Academia há 2 anos e conheci pessoalmente cada uma das Girl Movers do curso anterior, mas só conheci todas as atuais alunas na semana passada, no dia em que subiram ao palco da Universidade Católica, em Lisboa, para se darem a conhecer a quem já as apoia, em Portugal, mas também a quem nunca tinha ouvido falar delas ou da Girl MOVE.

Antes da Iva falou a Vera e depois a Elvira. Apenas três contaram as suas histórias pessoais, mas a sua voz amplificou as vozes de todas as outras. Mais, de muitas mulheres que no mundo inteiro vivem subjugadas, escravizadas, submetidas a grandes violências e sujeitas à lei do mais forte.

Clarice Lispector, noutra latitude e noutro tempo, com outro histórico e a sua natureza privada, buscadora, interrogativa, também “transformou as suas lutas de mulher numa arte de caracter universal”, como escreveu o seu biógrafo. Todas as Clarices e Ivas, Elviras e Veras mais ou menos anónimas, dotadas para a escrita ou para a luta no sentido literal e metafórico, vivem numa atitude de interrogação e coragem, de autenticidade e superação que sustenta e cimenta a frágil fortaleza interior de milhares de mulheres que a norte e a sul, a este e oeste, não escolheram nascer e, muito menos, existir para sofrer, mas cuja vida é um calvário sem fim.

Vera, a Girl Mover que falou antes de Iva, começou por dizer que passou toda a sua vida de estudante debaixo de uma grande árvore, de sombra frondosa, a aprender as coisas da escola. Aquilo que pode soar a poema de luz e sombras, a um tempo com mais tempo é, na verdade, uma situação altamente erosiva, pois debaixo de uma árvore não há condições para estudar todos os dias durante horas a fio, ao calor e ao frio, nos dias de sol e de chuva torrencial, tropical.

“Não tínhamos mesas nem cadeiras, não havia lápis nem cadernos, eramos demasiados em cada ‘turma’ e, para mim, não era normal aprender assim. Eu nunca achei normal, mas todos à minha volta diziam que sim, que sempre fora assim e que não me devia queixar”.

Vera não se resignou à precaridade extrema das condições em que era suposto estudar e foi à luta. Não tomou como normal aquilo que sempre acontece. Valeu a pena ter-se indignado e revoltado pois foi graças a esta sua força interior que chegou onde chegou. Num país onde apenas 1% de mulheres tem um curso superior, Vera pertence à nata por mérito próprio. Moçambicana, como Iva e Elvira, conhece bem a realidade das jovens raparigas e sabe o futuro que lhes está destinado: sucessivas gravidezes precoces e uma vida de humilhação e privação de direitos. Uma existência de vítimas, seja de maus tratos físicos, emocionais, morais ou outros.

Vera sublinhou a necessidade de cada um ter um propósito e revelou o dela: ser empreendedora com competências técnicas para explorar melhor o potencial agrário do seu país, que é descomunal, mas está sub-aproveitado. Embora tenha apenas 22 anos, criou a Agrovida e sabe exactamente onde quer chegar e quem quer levar consigo neste longo caminho de aprendizagem e evolução. As mulheres, desde logo, mas também os homens, para que também eles aprendam a complementaridade e o respeito, independentemente do género e condição social.

Elvira, a terceira oradora do encontro Liderança Transformadora – Mulheres com Impacto, promovido pela Girl MOVE Academy, onde estiveram também como oradores Isabel Gil, a Reitora da Universidade Católica, a jovem e inspiradora Rita Nabeiro, membro da Administração do Grupo Nabeiro, Filipa Caldeira, super empreendedora e fundadora da FullSix, Margarida Couto, advogada e Presidente da Fundação Vieira d’Almeida e do GRACE e Filipe Santos, Professor responsável pela Cátedra de Empreendedorismo Social da Católica Lisbon, dizia eu que Elvira, de 21 anos, foi a terceira oradora moçambicana que nos deixou siderados pela coragem e simplicidade com que se apresentou.

– Sempre me disseram que não era possível fazer omeletes sem ovos e toda a vida vi as mulheres à minha volta fazerem omeletes sem ovos, mas quero-vos dizer que há muita coisa muito melhor que omoletes!

Com uma simplicidade interpeladora e até poética, Elvira falou da sua mãe e da criatividade com que sempre fez as tais omeletes sem ovos. Elvira teve uma mãe ‘desperdício zero’ e aprendeu com ela a aproveitar e re-aproveitar tudo. A criar e recriar com arte e criatividade. Quando esperávamos que contasse que seguiu Artes, eis que nos revela: seguiu Química.

Certamente para poder fazer a alquimia de recuperar, entre muitas outras coisas, cocos deteriorados para poder fazer óleo e, desta forma, contribuir para a economia do seu país.

“Quero criar a melhor versão de mim mesma!” foi esta a sua frase de despedida, depois de ter contado com impressionante e magnífico detalhe o que a levou a ser engenheira química e o que se propõe fazer nesta área estratégica.

Escrever sobre estas Girl Movers não se compara a ouvi-las! Falam com alegria e leveza, com simplicidade e autenticidade, como se as suas vidas tivessem sido fáceis e continuassem sem tropeços. Infelizmente a perturbação é crescente e a precaridade também, mas esta certeza não desanima as girls da Girl Move.

Todas sentem ter um propósito a cumprir, que não é para elas, mas para os outros. Em especial para outras mulheres, mas não só. Ainda tão jovens, mas já com tantas certezas sobre o impacto que querem ter no mundo à sua volta. Com pouco mais de vinte anos, todas sabem exactamente por onde querem começar e atrevem-se a dizer, como Elvira: “sou parte da geração que vai mudar o meu país!”. E nós acreditamos.

Nem “o velho susto da sua condição” de raparigas e mulheres perpetuamente maltratadas as assusta. Clarice falava deste ‘velho susto de uma espécie’, mas também de ativar todas as forças humanas possíveis para aniquilar este e outros sustos atávicos e imerecidos. Depois de ler Clarice e de ouvir Iva, Vera e Elvira, apetece gritar: go, girls, go!