Do experimentado parlamentarismo britânico, consciente da importância fundamental da oposição para a democracia representativa, para além do reconhecimento do seu papel primordial como “a Mais Leal Oposição de Sua Majestade” (“Her Majesty’s Most Loyal Opposition”, no original), espera-se a formação de um ‘Governo-Sombra’. Esta característica, tão própria do chamado ‘sistema de governo de Westminster’, não fazendo parte oficial da nossa forma de organizar a vida parlamentar foi, entre nós, particularmente ensaiada pelo PSD. Tendo o conceito sido discutido e abordado várias vezes, ora sob o nome de governo-sombra, ora como gabinete-sombra (ou ainda como governo-paralelo, numa abordagem mais luso-tropical), foi apresentado aos portugueses pela iniciativa de Durão Barroso, enquanto líder da oposição entre 2000 e 2002. Nessa altura, o Engº Guterres liderava o Governo do PS, no habitual caminho que aquele partido escolhe quase sempre em direcção ao pântano.
Essa experiência portuguesa, pela mão do PSD, procurava emular timidamente o que se fazia em terras de Sua Majestade Britânica ao atribuir a ‘titularidade’ de áreas específicas da oposição a Porta-vozes, como se chamavam no PSD. Isso faria de cada um deles a voz mais autorizada na oposição para debater as suas áreas específicas, taco-a-taco, com o ministro de facto da respectiva pasta e, por maioria de razão, na discussão parlamentar do tema sempre que a mesma ocorresse. Foi uma experiência acanhada, a que faltou desenvolvimento e da qual não se procurou explorar os conhecidos benefícios. Como curiosidade, recorde-se que o ‘ministro-sombra’ (porta-voz) do PSD para o Desenvolvimento e Coesão Nacional, entre 2000 e fim de 2001 era, de sua graça, o Dr. Rui Rio. Julgo que terá sido nesse espírito que os próprios estatutos nacionais do PSD, fizeram constar o conceito, de forma muito tímida, na alínea d) do nº 2 do seu artigo 16º, chamando-lhe “Gabinete Sombra”.
Feita esta alusão retrospectiva, e confessando-me um indefectível adepto do conceito de Governo-sombra, não posso deixar de discorrer sobre a oportunidade perdida pelo PSD de demonstrar ao país a importância do exercício pleno do papel de opositor parlamentar, ainda para mais sendo pretendente a formar governo.
Ser oposição com aspirações governativas não é um mero exercício de estar e ser “do contra”, dizendo mal de tudo o que um governo diga ou faça. Nisso, tem toda a razão o Dr. Rui Rio. Mas esqueceu-se de acrescentar o advérbio de modo “acriticamente”. Ou seja, cabe à oposição identificar, por via da fiscalização que lhe compete, o que o Governo faça ou planeie fazer e que considere errado e, para além de justificar porque é que considera estar errado, propor a respectiva política alternativa. Ora, é aqui que o conceito de Governo-sombra tanto teria beneficiado o país durante os últimos anos de governos socialistas. O seu exercício assumido e sem a timidez de quem copiara Westminster às escondidas, mas antes com a certeza de inspiração no testado parlamentarismo de quem bem o faz, teria dado ao PSD a imagem de uma oposição séria e a certeza de ser uma alternativa eficaz e ambiciosa. Uma oposição especializada, com as suas competências bem distribuídas, cabendo ao líder a condução bem orquestrado do grupo.
Em vez disso, o líder do partido resolveu optar por uma estratégia tripartida de condução do PSD, toda ela centrada e a partir de si próprio:
1. Seria ele a dizer bem das medidas e actuações do Governo e do PS, se as julgasse boas.
E, assim, sem garantias de fiscalização do seu cumprimento ou adequação, colaborou complacentemente com as decisões expressas pelos socialistas – o que se viu desde, por exemplo, o acordo com a falta de crítica do Dr. Costa às várias afrontas da Turquia e Erdogan, até à falta de fiscalização consequente das medidas de combate à pandemia, entre tantos outros apoios ao Governo, quer por acção, quer por omissão. Para além de ferir o próprio PSD através das constantes alterações erráticas das suas próprias posições, como no já longínquo caso parlamentar dos professores, ou na permissividade com os extremistas nos Açores e explicações titubeantes que se seguiram, entre tantos outros “tiros nos pés”.
2. Seria ele a fazer as críticas, se e só quando achasse que o Governo as merecesse.
Com isso sendo incapaz de assegurar propostas alternativas e sublinhando que tudo o que não merecesse a sua crítica é porque estava absolutamente bem feito e decidido ou até omitido pelo Governo e o PS. Deixou, pois, crescer a ideia de que o PSD não faria melhor. Com isto, reservou para si apenas o espaço de intervenção crítica no que se veio a chamar a política dos “casos e casinhos”.
3. Seria ele a transmitir o planeamento estratégico do CEN – Conselho Estratégico Nacional.
No que me mereceu o maior entusiasmo inicial, a dinamização do CEN – Conselho Estratégico Nacional que, como se fosse uma espécie de congresso nacional permanente alimentando um grande gabinete de estudos, elaboraria a estratégia global nacional do PSD a partir das várias propostas estratégicas sectoriais. O problema é que, depois de uma partida cheia de promessas, transformou-se numa estrutura cada vez mais distante e sem apresentação de resultados, estratégias, respostas ou alternativas em tempo útil. Excepto as que, de quando em vez e pela boca do próprio Dr. Rui Rio, surgem completamente fora de tempo ou a despropósito – como apresentar uma revisão constitucional em tempo de pandemia e crise continuada (esquecendo-se o Dr. Rui Rio que “em tempo de guerra não se limpam armas”, ainda que a revisão seja necessária, e até porque o PS declinou quaisquer acordos com o PSD).
Ou seja, o Dr. Rui Rio é um homem indubitavelmente sério e bem-intencionado, mas que prescindiu teimosamente da aprendizagem da história. Até a do seu próprio partido. O país, já democraticamente adulto, não precisa de um tutor sério e bem-intencionado. Dispensa paternalismos. Precisa de um Governo capaz, mas intransigentemente fiscalizado por um parlamento interventivo (que debata até mais que quinzenalmente!). Precisa de uma oposição séria, construtiva e eficaz que se apresente permanentemente como uma alternativa absolutamente confiável. Essa alternativa demonstra-se pela capacidade de formação e funcionamento contínuo e muito eficiente de um Governo-sombra.
O Dr. Rui Rio, confiando apenas no seu instinto que já antes o serviu tão bem, concentrou em si o que achou ser uma boa oposição. Achou que bastava a sua própria imagem de seriedade e de desapego ao poder. Não deu a conhecer aos portugueses as propostas alternativas, as políticas e estratégias apresentadas e defendidas por algumas das pessoas com que o país poderia ser melhor governado (apenas esporadicamente dando a entender que as tinha, como no caso do Dr. Miranda Sarmento e poucos mais). O caminho do Governo-sombra dava muito mais trabalho. O Dr. Rui Rio, por mais que diga o contrário, optou pelo caminho mais fácil. Quando precisávamos de um exemplar Governo-sombra, deu-nos uma oposição na sombra. Quanto muito, pensando no CEN, deu-nos uma sombra de Governo e, ainda assim, à sombra do Governo.