Há poucos dias comentei no twitter uma mensagem bonita do Presidente Bush pai, doente, a propósito de uma visita do seu ‘grande amigo’ Bill Clinton. Já aquiescrevi sobre esta amizade – improvável, diríamos apressadamente – entre George W. H. Bush e Bill Clinton. Na altura referi como era difícil, por cá, termos este nível de respeito e afeto entre os líderes políticos à esquerda e à direita.

Lamentavelmente, e graças ao advento do trumpismo, parece que esta civilidade também terminou nos Estados Unidos. As novelas políticas por lá sucedem-se em ritmo estonteante (é propositado, os líderes de tendência autoritária tendem sempre a promover a agitação permanente para evitar reflexão aprofundada), e nos últimos dias têm mostrado bem o cisma americano. Sarah Huckabee Sanders, a press secretary de Trump, estava num restaurante (com o nome colorido de Galinha Encarnada) e a proprietária pediu-lhe para sair porque não a queria servir. Dias antes, no meio da implementação da política de separação de pais e crianças que atravessavam a fronteira com o México, a ministra da segurança interna Kirstjen Nielsen foi alvo de protesto num restaurante mexicano (a ironia), com os outros clientes aplaudindo os manifestantes. Dias depois, uma congressista democrata da Califórnia apelou a que as pessoas se manifestassem contra quem trabalha na administração Trump se calhassem cruzar-se com eles. E, claro, logo de seguida Trump insultou a dita congressista via twitter, incluindo uma ameaça velada.

Isto tudo seria risível – e apropriado – se passado num recreio de uma escola secundária. Parece uma birra da esquerda americana, mas em boa verdade a administração Trump não tem que se queixar. Afinal esta administração participou no processo que há pouco tempo foi julgado no Supremo Tribunal americano, argumentando pela legalidade de uma empresa recusar vender um bolo para um casamento gay. A mesma Sarah Sanders disse, no seu pódio na Casa Branca, que a administração Trump não se opunha a que os estabelecimentos comerciais colocassem avisos de que não vendiam para gays. Bom, se uns não servem gays, outros têm o mesmo direito de não servir trumpistas, parece-me.

E assim se cria uma sociedade mais dividida, com mais acrimónia e desentendimento entre as várias pessoas com esta ou aquela pequena diferença distintiva. Já nem essa eficaz estratégia milenar de aproximação entre os povos e as culturas – o comércio e as trocas económicas – é útil para unir quem tem religiões, orientações sexuais ou inclinações políticas diversificadas.

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Claro que Trump derrama gasolina e atira um fósforo para todas estas guerrilhas. Os insultos e ameaças constantes no twitter, as mentiras continuadas e repetidas, a absoluta recusa em se submeter ao escrutínio democrático (da imprensa, dos tribunais, do departamento de justiça, as declarações de impostos e transparência nos negócios que faltam), o clima imparável de guerra a quem o afronta. A consequência é legitimar politicamente todos os insultos, as ameaças, as mentiras, a recusa ao escrutínio, a guerra declarada. Nada melhor para erodir a confiança na democracia. Os comunistas (que regra geral não antipatizam com o fenómeno Trump) sempre o souberam e promoveram estes climas. Se as instituições e seguranças normais deixam de existir, as pessoas ficam menos apavoradas com as revoluções. Têm menos a perder.

Trump não é o único culpado. Obama também teve momentos em que fez por hostilizar a parte mais conservadora da América. Lembram-se daquele discurso em que desdenhosamente referia as populações rurais que se agarravam às armas e religião? Ou o termo que os americanos bem na vida usam há muito para os brancos mais pobres – white trash (lixo branco)? E as questões identitárias (que a nova direita adotou e adora) foram invenção da esquerda.

Amy Chua, no novíssimo Political Tribes, faz uma radiografia de gelar a alma das divisões e ressentimentos entre os vários grupos populacionais americanos. Temos de um lado gente privilegiada que diletantemente se agrupa em movimentos inconsequentes como o Occupy Wall Street ou se entrega a paroxismos de indignação por tontices como a apropriação cultural, ‘olimpíadas da opressão’ ou inutilidades semelhantes. De outro, uma tribo branca mas working class que tem exatamente as mesmas dificuldades que os negros e latinos pobres sem as ajudas oferecidas a estas comunidades. São um grupo populacional fora das universidades, das promoções profissionais, da política. Têm altas taxas de desemprego e a esperança média de vida a diminuir. São, como diz Chua, a nação NASCAR, do World Wrestling Entertainment e do ‘evangelho da prosperidade’ – e de Trump. Ressentem-se porque a tribo branca bem na vida os considera uns broncos. Sendo que são broncos e se orgulham disso.

Amy Chua (académica de Yale), ao longo do livro, também nos vai dando pesquisa científica sobre a psicologia das afinidades grupais (de resto útil para além das questões étnicas e de classes) e da diabolização daquele que está fora do grupo. Evidentemente Trump despeja quilos de sal nas feridas e legitima todos os excessos. Mas o problema precede-o. Trump foi eleito e tem apoio sobretudo por ser grosseiro e mentiroso e aldrabão. Porque as várias tribos adoram a grosseria, a mentira e a aldrabice quando é aplicada aos de fora. Os defeitos de caráter que dantes envergonhavam agora são orgulhosamente brandidos.

Não vale a pena pensar que isto é do outro lado do Atlântico com os doidos americanos. Lá são mais refinados mas na Europa há divisões que não se vê como remediar. O Brexit foi um caso, Itália outro. Os problemas da imigração e dos refugiados explicam alguma coisa, mas não tudo – de resto têm diminuído a afluência. Os ressentimentos vêm de dentro das próprias comunidades.