John F. Kennedy não deixou apenas um legado político, também povoou o imaginário universal de imagens e frases que ficaram a fazer eco por muitas e variadíssimas razões. “We must find time to stop and thank the people who make a difference in our lives” foi uma das frases proferidas e repetidas ao longo do seu mandato como presidente dos EUA, recorrentemente destacada por quem aposta nesta ‘gratitude attitude’. Também citou poetas como Khalil Gibran para apelar à motivação de fundo de cada um: “não perguntes à vida o que ela te pode dar, pergunta a ti próprio o que podes dar à vida!”.

A poucos dias de terminar este ano e em vésperas de inaugurar 2016, estas e outras frases fazem um sentido especial porque nos ajudam a pôr muita coisa em perspectiva. Inspirar 2016 foi o que o Papa Francisco fez ao decretar um Jubileu extraordinário, um Ano Santo da Misericórdia, recordando-nos que perante tudo o que acontece no mundo e à nossa volta, Deus também reza. E o que reza Deus?, perguntarão muitos. Tolentino Mendonça leva-nos por estes caminhos misteriosos e conduz-nos à fonte: “Deus reza para que a Sua misericórdia seja sempre superior ao Seu juízo”. Tolentino falou deste Deus misericordioso que ajoelha e reza, num dos encontros da Capela do Rato, em Lisboa, desta vez com Luís Miguel Cintra, actor, com quem tem trabalhado estas e outras questões, numa construção permanente da imagem de Deus que envolve crentes e descrentes, cépticos e duvidosos, mas também convertidos. Com Cintra, Tolentino falou mais tarde sobre as figuras de misericórdia no teatro, mas não é sobre essa fabulosa pesquisa que me detenho hoje.

Hoje o que me faz escrever é este sublinhado de Tolentino, quando nos revela um Deus que reza para não ser nunca um justiceiro legalista, um fiscal opressor dos nossos actos, uma espécie de big brother das nossas vidas, a controlar, a comandar a existência de cada um. Tal como disse o Papa Francisco, o desafio do Ano da Misericórdia é trabalharmos a imagem que temos de Deus e descobi-Lo (ou redescobri-Lo) como Pai das misericórdias. Sabemos que todas as religiões têm dimensões de violência, coisas inaceitáveis que não podemos levar à letra, mas também sabemos que as passagens de misericórdia se sobrepõem sempre às outras. Seja em que religião for. Valorizar o património de misericórdia do Alcorão, salientar os actos misericordiosos do judaísmo, revelar toda a misericórdia real e concreta, entre ateus e agnósticos é essencial para percebermos este desafio do Papa Francisco. Tolentino diz, com muita eloquência e precisão que ‘qualquer homem pode ser um mestre de misericórdia’ e embora seja uma verdade universal é facilmente ignorada ou descartada por muitos. Hollande disse que “não podemos ter piedade” e todos os percebemos, como é evidente, mas vale a pena pensar, como diz Tolentino, que “temos que responder com clareza e firmeza, mas sem esta terminologia impiedosa, porque não sabemos os ouvidos que nos escutam”. Inspirar 2016 pode passar por nos deixarmos interpelar por frases grandiloquentes sabiamente proferidas por políticos, poetas e grandes mestres, mas passa certamente por limpar o olhar e purificar esse invisível de cada um onde tudo nasce e tudo acontece.

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