Uma família em isolamento, dia 10

“Bem, já é oficial. O primeiro exemplar de Covid 19 saiu aqui ao menino.”

Foi assim que recebemos a notícia ontem ao fim da tarde. A mensagem aterrou no grupo de WhatsApp. Um dos nossos já está infetado. Sabe-o desde anteontem, quando o resultado do teste veio confirmar o que o ele suspeitava há vários dias. Aquela febre, aquele cansaço extremo, a prostração, a dificuldade em fazer as tarefas mais básicas eram, afinal, Covid-19.

Não sabíamos que se andava a sentir mal, pelo que a notícia apanhou-nos de surpresa. A ele não. Já calculava, com os sintomas que tinha, razão pela qual tinha decidido autoisolar-se em casa, tentando garantir uma zona segura a que a mulher e a filha não acedessem.

As mensagens e os telefonemas sucederam-se nos minutos seguintes. Então, pá? Estás a brincar? A sério? Estás bem? Como tiveste a certeza? E és só tu? Mais alguém aí em casa? Precisas de alguma coisa? Raios! Fogo! É mesmo? E como achas que foi? No trabalho? Na rua? Com quem?

“Não se preocupem, está tudo bem, agora é só tosse e repouso, já praticamente recuperado.”

Era uma questão de tempo, não era? Como é que, no momento que atravessamos, com o número de casos confirmados a aumentar e o país já em fase de mitigação (desde a meia-noite de hoje), com contaminação comunitária, ainda não tínhamos ninguém conhecido com diagnóstico? Há neste momento 2995 casos confirmados (escrevo antes da divulgação do boletim da DGS que será conhecido às 12h00) e, a confirmarem-se as previsões, nas próximas semanas será sempre a subir. Haverá mais probabilidades, portanto, de tocar a mais pessoas que conhecemos – desejando, com todas as forças e recomendações e ajuda, que não toque a ninguém próximo que pertença a um grupo de risco.

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As miúdas não se aperceberam. Fomos discretos, fizemos os telefonemas que tínhamos de fazer, mantivemos os telemóveis no silêncio e não acrescentámos mais alarme ao estado em que têm vivido nos últimos dias e que temos tentado controlar, limitando a exposição a notícias mas não deixando de as lembrar sucessivamente sobre comportamentos que devem evitar quando vão à rua apanhar sol e correr, longe de gente mas perto de nós. “Não toques aqui, não mexas ali, não te aproximes de ninguém, o pai tem aqui desinfetante para esfregares nas mãos.”

Na prática, para nós, nada mudou. Não é por esta notícia que adotamos comportamentos diferentes dos que temos seguido até aqui, não é por ficarmos a saber que um amigo está doente que nos protegemos mais do que nos temos protegido ou nos fechamos mais em casa além do que temos feito. Não é agora que vou insistir ainda mais com os meus pais para que se resguardem e se protejam.

Para nós nada mudou em termos de atitude. Mas agora é um dos nossos, não são apenas números. Um daqueles agora é alguém que nós conhecemos. E isso muda-nos por dentro.

Para muita gente, porém, se calhar só quando tiverem alguém da família ou do grupo de amigos com um diagnóstico confirmado é que mudarão definitivamente de comportamentos de risco. Só aí é que deixarão de vez de pensar que isto só acontece aos outros, “que a mim o bicho não pega”.

A coisa está estudada. Aprende-se nas aulas de jornalismo, mas aposto que em psicologia e sociologia também se fala disto. Chama-se Lei da Proximidade mas, nas redações onde ainda há jornalistas “antigos”, com memória, chamam-lhe Lei do Morto por Quilómetro. Determinado acontecimento é tão mais grave para nós quanto mais perto está da nossa vida, assim postula esta máxima. Dois mortos na nossa cidade são tragédia maior do que vinte no país vizinho. Só quando a desgraça nos bate à porta – ou de alguém que conhecemos – é que acreditamos que ela chegou. E nos pode atingir a nós.

Há muita bibliografia que teoriza sobre isto e explica com bons exemplos esta forma de reagir. Mas podemos recuar mais de 120 anos para encontrar um delicioso pedaço de prosa de um autor que descreve isto melhor do que ninguém.

Num texto chamado “As catástrofes e as leis da emoção”, que seria publicado em 1907, sete anos após a morte de Eça de Queirós, num livro intitulado Cartas Familiares e Bilhetes de Paris., o escritor defende que “a distância actua sobre a emoção exactamente como actua sobre o som. A mesma dura lei física rege desgraçadamente a acústica e a sensibilidade.”

“Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde. Em torno da mesa outras senhoras costuravam. ‘Na ilha de Java um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas…’ (…) Ninguém comentou, sequer se interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa! Depois, mais perto, na Hungria, ‘um rio trasbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados…’. Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: ‘Que desgraça!’“

O rol de notícias continuava. Quanto maior a proximidade, menor a gravidade mas maior a comoção. “Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas… Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: ‘Que horror!… Estas greves!… Pobre gente!…’” Os três mortos pelo trem descarrilado no Sul de França também provocaram reações. Mas de repente…

“– Santo Deus!…
Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:

– Foi a Luísa Carneiro, da Bela Vista… Esta manhã! Desmanchou um pé!
Então a sala inteira se alvorotou num tumulto de surpresa e desgosto.

As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltrona; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!… A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela Vista, buscar notícias por que ansiávamos. (…)

Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações… Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro, dando à rua sombra e perfume.”

Ontem ficámos a saber que um amigo está doente. Não sabemos que notícias chegarão hoje. E quão próximas de nós serão as próximas vítimas.

Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento): 

Dia 1: sabe o nome do seu vizinho?

Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?

Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai

Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.

Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal

Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais

Dia 7. Uma quarentena para conseguir ler as mensagens todas no WhatsApp

Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha 

Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como é que estão a lidar com isto?