Na Manchester Art Gallery decidiram tirar das suas paredes um quadro vitoriano de Waterhouse por lá ter representado um grupo de ninfas despidas. Isso mesmo: mulheres nuas foram tiradas das paredes de uma galeria de arte. O objetivo – de resto da diretora da instituição, uma mulher – era gerar debate. Não entendi grande coisa, mas aparentemente falar de mulheres num quadro serve para isto e aquilo da objetivação do corpo das mulheres, seres passivos e por aí adiante. O quadro pródigo entretanto retornou.

Leio estas notícias e desespero. Fico com vontade de lançar fatwas contra pessoas. Já não bastam os seres boçais que, na carneirada do seu grupo. tratam as recentes denúncias de abusos graves no contexto do #metoo como se estes crimes sem castigo que destroem profissões e vidas de mulheres fossem apenas um combate do politicamente correto. Agora temos os alucinados que tentam criar ligações diretas entre a representação feminina na arte com abuso e assédio sexual. Não conseguimos mesmo falar de temas importantes sem espalhafatos inúteis?

Atenção: há debates a ter sobre as mulheres na arte. Um muito importante é o apagamento e o silenciamento dos contributos muito bons que as mulheres dão nas artes visuais. Como de resto nos outros lados. Por que não se entreteve o museu de Manchester a exibir as obras de arte produzidas por mulheres e que foram injustamente esquecidas? Há muitos casos no século XX. Mas em 2018 o que certa clique vê como degradante não é o apagamento das mulheres, de resto replicado noutras atividades, mas sim umas mamas e umas coxas à vista.

Esta visão do perigo da nudez é problemática por vários motivos. Só se retira um quadro com umas catraias despidas para gerar um dito necessário debate se se presumir que há algo de errado nas catraias despidas só pelo facto de estarem ao léu. Estamos, então, a regressar a um tempo em que a nudez é pecaminosa e uma transgressão, cuja exibição deve ser punida? Já não vemos a arte como, entre outras, uma forma de prestar tributo à beleza humana? É certo que o museu não queimou a obra de Waterhouse numa fogueira hitleriana de arte degenerada, mas estabelecer os limites da nudez numa obra não é já censura?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Também me leva ao desespero a proximidade com o argumentário islâmico que promove mulheres tapadas em público. É que, afinal, se, como sugere a retirada do quadro, apresentar uma mulher nua é uma degradação dessa mulher, então para ser respeitada a mulher deve exibir-se bem provida de roupa, pelo menos até aos pulsos e abaixo do joelho de forma a não agitar a imaginação masculina.

Visto pelo lado oposto, se uma mulher não está coberta de acordo com os padrões islâmicos e do museu de Manchester, se não se está a proteger da objetivação, pode ser assediada e sexualmente abusada. Afinal é o que se diz em muitos países islâmicos das mulheres que não cobrem a cabeça. Ou, igualmente mau, passa-se a mensagem que os homens são todos uns incontinentes sexuais que perante nudez ou visão ampla da pele de uma mulher não se conseguem controlar e toca de forçar sexo com a doidivanas oferecida que está na praia de bikini.

Como não se vê como estão erradas todas estas mensagens e são mesmo contrárias àquilo que as recentes denúncias pretendem veicular: que uma mulher não é uma presa sexual por estar vulnerável numa profissão (ou por estar com roupa sensual)?

É problemático ainda pelo papel para que se relega a arte. Mao Zedong, na China de 1942, durante as célebres Conversas de Yan’an, determinava que a arte servia para o aprofundamento do marxismo, entretenimento e elevação espiritual e intelectual de operários e camponeses. Nada de mariolices de invenções artísticas para expressão da individualidade ou para explorar a criatividade de cada um. Campo de reeducação pelo trabalho para o impertinente que usasse a arte como provocação ao poder ou à moral vigente. A arte servia para seguir as instruções do partido comunista e para mostrar de forma realista a vida dos operários e camponeses.

É certo que Mao proferiu estas enormidades num soviete e viria mais tarde a aplica-las a toda a China. Mas o que a diretora de Manchester afirma não é muito diferente: aparentemente a arte deve comportar-se e servir somente para mostrar que os homens não devem objetivar mulheres. Quem tiver outras ideias se faz favor que as esconda nos cadernos de esboços trancados numa cómoda de casa. Em suma: a arte não pode ser arte.

Em finais de 2017 foram proibidos nos transportes alemães e de Londres os cartazes da exposição de Egon Schiele que se inaugurou por estes dias no Museu Leopold em Viena. A magna razão? Continham os desenhos de nus de Schiele, incluindo as zonas genitais. Estas poucas vergonhas foram tapadas e quem criou a publicidade colocou a frase (e traduzo) ‘Desculpem. Tem 100 anos mas ainda é demasiado ousado para hoje. #ToArtItsFreedom’. Em 2018, na livre Europa, temos de pedir encarecidamente liberdade para a arte.

Os nus de Schiele não são só de mulheres, indiciando que a tolice do museu de Manchester se insere numa obsessão anti nudez mais abrangente. (Não é grande alívio.) Razão tinha o presidente iraniano que exigiu que as estátuas romanas de gente nua fossem tapadas. É o que vai suceder a todas, brevemente, a pedido dos iluminados ocidentais. Por mim estou precavida. Antes que a moda ‘tapa o mamilo’ (que substituiu a ‘liberta o mamilo’) vingue, já descarreguei o vídeo do anúncio da Coca Cola que passou no início dos anos 90, essa era de trevas e desvergonha (senhoras, apreciem aqui a versão espanhola).