O presidente da Câmara de Loures Ricardo Leão verbalizou em público aquilo que, com toda a certeza, ouve dizer aos seus munícipes. E que é, basicamente, um dos segredos do  sucesso do Chega. Há um grupo de pessoas que podemos considerar como os deserdados dos apoios sociais, em que a casa, no caso dos municípios, é um dos mais importantes e pesados exemplos, que se vão revoltando com o que vão vendo.

Antes de avançarmos é importante ir aos factos. Como se pode ler aqui, o vereador do Chega Bruno Nunes propôs uma alteração ao regulamento de acesso às habitações da autarquia nos seguintes moldes: “Como forma de dissuadir a prática de quaisquer tipo de ilícitos, por parte dos arrendatários das habitações municipais que, ao ser provada a participação e/ou incentivo nestes ilícitos, que seja dada imediata ordem de despejo.”

A esta proposta do presidente da Câmara respondeu: “É óbvio que não quero que um criminoso que tenha participado nestes acontecimentos… se for ele o titular do contrato de arrendamento é para acabar e para despejar. Ponto final parágrafo e é bom que este regulamento permita isso, e permite, no entanto, é melhor revisitar. Quem é maior de idade, é titular de um arrendamento na habitação municipal de Loures e seja comprovado que participou nestes atos é para retirar a casa, ponto final parágrafo, sem dó nem piedade.”

Conhecendo agora os factos, é óbvio que as críticas de se querer substituir à justiça caem por terra. Mas mantêm-se obviamente as críticas de desumanidade e de se criar um problema ainda maior. Para onde vai o arrendatário? E a sua família? Desincentiva de facto, esta medida, que se cometam ilícitos? Ou incentiva ilícitos gerados pelas necessidades económicas?

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O problema, como se percebe, não é fácil. E mais difícil ainda é fazer compreender à população em geral porque é que o Estado, seja através do Governo ou das autarquias, apoia pessoas que, aos olhos dos outros cidadãos, não o merecem, deviam era, na voz do povo, trabalhar.

E é por aqui que se entende outra declaração de Ricardo Leão quando se refere às dívidas em refeições escolares e conclui que, depois de uma avaliação da assistente social, a criança pode ficar sem a refeição, pressupõe-se que é se se concluir que os pais podem pagar. E diz, o que ouvimos na voz do povo, que esses pais são muitas vezes vistos a tomar o pequeno almoço na rua todos os dias.

Mais do que rasgar as vestes em demonstração de grande humanismo contra a crueza das posições assumidas por Ricardo Leão, devíamos estar a refletir sobre a margem que temos andado a dar para a instrumentalização dos apoios sociais. Instrumentalização essa que gera a revolta de uma classe média e baixa trabalhadora que não tem acesso a esses apoios.

O Estado Social está concebido para nos apoiar na doença, no desemprego e na velhice. Pode e deve ser alargado para situações em que o apoio é o mal menor, na incapacidade de se encontrar melhor solução, como por exemplo, nos programas de apoio aos toxicodependentes. Mas o crescimento do Estado Social tem criado um grupo que o instrumentaliza, sem desempenhar uma outra função que devia ter, a de retirar as pessoas da pobreza.

Se continuarmos com esta atitude com laivos de Estado Novo de “coitadinhos dos pobrezinhos”, dando-lhes sistematicamente o peixe sem sequer criarmos regras que os ensinem ou obriguem a pescar, estamos a alimentar pessoas irresponsáveis e, no limite, manipuladoras do sistema. E quanto mais se desenvolver este modelo maior será a revolta de quem trabalha e é deserdado destes apoios, mais ainda quando a Saúde e a Educação públicas funcionam mal.

Neste momento devíamos estar a debater as brechas dos apoios sociais e de como as podemos combater. Devíamos estar a tentar perceber se os apoios chegam a quem precisa ou se estão a ser usados por quem menos precisa.

Ricardo Leão pode não ter sido feliz na formulação que usou, quer no caso das casas como no caso das refeições para as crianças. Mas foi ao encontro das preocupações de munícipes que veem as autarquias a apoiar algumas pessoas que conhecem bem e sabem que não precisam, que usam o sistema.  Quem vive no Parlamento em Lisboa pode ter dificuldade em perceber isso.

Só quem está nas autarquias (ou nos governos), tem coragem e se preocupa de facto com a vida das pessoas – porque há os que deixam andar e a esses não acontece nada – é que percebe que alguma coisa terá de ser feita, para que os apoios sociais sejam mais eficazes na ajuda a quem precisa e também como ferramenta, que também deviam ser, de elevador social. Ser cúmplice de quem manipula o sistema é pactuar com oportunistas e contribuir para uma comunidade sem valores. E os revoltados, mais cedo ou mais tarde, cairão nos braços do populismo.

No livro autobiográfico do agora famoso J.D. Vance Lamento de uma América em Ruínas ( ou na versão original Hillbilly Elegy que pode ser vista também em filme) um dos relatos que se fixa na memória é a injustiça sentida por ver quem não trabalha e vive de apoios sociais ter um telemóvel que ele não consegue ter.

Os governos e os autarcas não vão conseguir resolver o problema da manipulação dos apoios sociais de um dia para o outro. Mas podem começar a tentar não crucificar quem os identifica e tenta, mal ou bem, começar a corrigi-los. Precisamos do Estado Social, e quem abusa dele está a condená-lo a uma morte que ninguém deseja.