Outrora, sabia-se que Portugal era um país traduzido do francês. Foi Eça de Queiroz que o disse. Era no tempo em que os estudantes portugueses aprendiam francês. Hoje, aprendem inglês, mas nem por isso o chiste queirosiano deixou de ter sentido. Sim, a nossa política é ainda, em parte, adaptada do francês, e não apenas por via da União Europeia. Se repararmos bem, o que Luís Montenegro anda a tentar no governo em Portugal é uma cópia tardia do que o presidente Macron ensaiou em França. O projecto de Macron acaba de encalhar. Vale a pena perceber o que aconteceu ao original, porque talvez ajude a antever o destino da tradução.

A ideia era muito simples, e por isso irresistível, como todas as coisas aparentemente simples. As migrações descontroladas fizeram crescer a direita nacionalista. Ao mesmo tempo, as universidades americanas inspiraram à esquerda mais um episódio de epilepsia extremista, a que se deu o nome de wokismo. Em 2017, Macron viu a oportunidade: entre uma direita a que a esquerda chamava “fascista”, e uma esquerda que as pessoas sensatas passaram a achar “louca”, governar em nome do “centro moderado”.

Como talvez fosse de prever, o resultado foi um jogo de enganos. Pelo palco, Macron passou sob os mais variados disfarces: umas vezes, penitente “pós-colonial”; outras, polícia intransigente. Nas eleições, explorou o papão do “fascismo” para obter os votos da esquerda. No governo, invocou as urgências financeiras para exigir à direita que lhe viabilizasse o Orçamento. Nas últimas legislativas, juntou-se com a esquerda anti-semita. Agora, não se teria importado de continuar a governar apoiado nos “fascistas”. O que aconteceu esta semana era fatal: um consenso entre esquerda e direita para pôr fim à comédia. Os eleitores já se tinham cansado: o partido do presidente caiu de 308 deputados em 2017 para 98 este ano.

Para que serviu o ludíbrio macronista? Para a França chegar ao estado de “nova Grécia”, com um défice e uma dívida abissais. Podia ter sido de outra maneira? Não podia. Um governo entalado entre esquerda e direita aumenta a despesa, porque as votações têm de ser pagas. A política, quando lhe falta o ímpeto de uma visão, tende a reduzir-se às necessidades da mercearia. Constatámos isso por cá no debate do Orçamento. Mas França e Portugal não estão em situação de sustentar tantos equívocos e habilidades.

As sociedades ocidentais passam por mudanças que ameaçam a sua coesão social. Num mundo em que mandavam, estão agora sob pressão de potências hostis aos seus valores. É natural que se dividam sobre o que fazer. Macron, tal como Montenegro, aproveitou a divisão para tentar emergir como o “justo meio” entre dois “extremos”. Havia outro caminho? Havia: assumir a polarização, e liderar a estruturação de um dos campos políticos, de modo a governar com um suporte coerente e um rumo inteligível.

Em França, através da “Nova Frente Popular”, as esquerdas já se combinaram. Na Europa ocidental, com algumas excepções como a Itália, são as direitas que permanecem divididas. A esquerda é independente, e decide por si quando se junta e se separa. Mas uma parte da direita vive, por frouxidão ou conveniência, sob a tutela da esquerda. Por isso, acomodou-se às “linhas vermelhas” decretadas pelo esquerdismo. Uma liderança política à direita valerá pela autoridade que tiver para romper com esta limitação. Não se trata de resolver um problema de certos partidos, mas de toda a comunidade. Os países ocidentais só podem ganhar com a possibilidade, que apenas à direita existe, de uma governação reformista.

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