A locomotiva franco-alemã está na estação à espera. O francês já lá se encontra, a colocar lenha na caldeira e o arranque do comboio europeu aguarda apenas que a mão esquerda e a mão direita do maquinista alemão concluam finalmente o acordo que já concordaram em estabelecer, para que a marcha se possa iniciar.
À espera estão as outras carruagens, os Estados europeus que, nos últimos anos, chegaram a pensar que teriam de fazer o percurso sozinhos, face a perigos de toda a natureza, porque a natureza que os espera, nesse percurso, é agreste e global, é global e perigosa, tem ursos e pandas gigantes e até águias de popa amarela que ameaçam com obstáculos de todo o tipo – protecionismo, dumping social, cânticos guerreiros nacionalistas.
Boa parte dessa unidade deve-se à deriva britânica, outra ao discurso de Emanuel Macron, um político que não emerge da política partidária mas da nova realidade global, onde já se fala em eleger uma vedeta da televisão para o lugar da vedeta de reality shows que ocupa o lugar político mais poderoso do Mundo. Para espanto desse mesmo Mundo, Macron venceu com um discurso performativo que rompeu com a tradição declarativa francesa e implica acção: a Europa precisa de mais Europa e não precisa de nacionalismo, declarou o presidente francês.
Entretanto Merkel, depois de vencer, falhou o primeiro acordo que lhe permitiria governar, a aliança pouco europeia designada “Jamaica”; ao invés, o princípio de acordo entre a Chanceler e Martin Schulz, presidente do SPD, é a favor de mais Europa (e menos imigração…).
Mais Europa.
Antes do mais, o alerta: nada está decidido. Embora os líderes dos dois grandes partidos alemães do pós-guerra, Merkel e Schulz, CDU e SPD, estejam de acordo sobre a possibilidade de um acordo, os respectivos partidos podem não concordar, em especial o SPD, que muito perdeu nas urnas por causa, pensam alguns analistas (como eu), dos oito anos de usura como parceiro júnior na grande coligação do 1º e 3ºs governos Merkel (2005-9, 2013-17). A continuação das negociações, nos termos deste acordo de 28 páginas, depende da aprovação no Congresso do SPD, que terá lugar domingo, 21 de Janeiro. E as bases votarão o acordo final, ao invés da CDU, que o fará nos seus órgãos de decisão.
Antes, por isso, de considerar as hipóteses de sucesso, sugiro o oposto: o que sucede se os militantes do SPD, ciosos da identidade de centro-esquerda do velho partido de Willy Brandt e Helmut Schmidt e desiludidos com as poucas concessões feitas ao partido no pré-acordo, o rejeitarem? O prognóstico é fácil: novas eleições, provavelmente o AfD (Alternativa para a Alemanha), já o partido representado no Bundestag mais à direita do pós-guerra, volta a crescer, e o país fica mais próximo da ingovernabilidade.
Para a Europa, será a desilusão. Pode acontecer. Pode. Espero que não, mas nos tempos que correm nunca se sabe, mesmo numa Alemanha avessa à instabilidade. “Et pour cause”, claro.
Se não for assim, e se dentro de algum tempo – fins de Fevereiro, início de Março – houver um novo governo Merkel de coligação com Schulz, a Europa e a União Europeia terão uma nova oportunidade de renascer. Num Mundo globalizado, só uma Europa unida, forte, democrática, integrada no essencial, pode sobreviver; caso contrário, isolados, protecionistas, sem o chapéu-de-chuva americano (de momento recolhido), em plena recessão demográfica, os países europeus encararão sem esperança o ocaso hegeliano que lhes promete há muito a sua própria história, de sucessivas guerras civis (nos séculos 19 e 20, sobretudo).
Mas afinal o que promete este pré-acordo Merkel-Schulz em matéria europeia?
Martin Schulz, de momento entronizado nas vestes de fazedor de rainha, disse-o claramente: “Estamos determinados a colocar todo o poder económico e político da Alemanha uma vez mais ao serviço do grande projecto que é esta comunidade de nações”, a União Europeia. E como? Através da reforma radical da eurozona e do reforço dos recursos financeiros postos à disposição da integração europeia, estando a Alemanha, já o maior contribuinte para a União, disposta a assumir mais encargos.
Música para os ouvidos de Macron, o grande maquinista. A França é citada com frequência no acordo Merkel-Schulz, o aprofundamento da integração europeia corresponde ao seu ideário fundamental, e a promessa de reforço do próximo quadro financeiro plurianual da União ecoa como um eco das propostas do jovem Presidente francês de estabelecer um verdadeiro orçamento para a zona euro. Para mais, num cenário de optimismo francês, quando finalmente o velho país de Astérix revive uma espécie de primavera florida e a liderança alemã está enfraquecida, com Merkel num quarto mandato diferente dos anteriores, diminuída na sua autoridade, popularidade e poder por meses de negociações difíceis, cedências e descrença de uma parte do eleitorado, que prefere o novo sangue dos AfD’s ou da líder do Die Linke, Sahra Wagenknecht, que ainda ontem criticou Merkel, Schulz e Macron por construírem uma Europa desigual, contra as pessoas, em que o valor dos dividendos distribuídos atingiu o valor record de 323 mil milhões de euros enquanto a desigualdade aumenta.
Mas não interessa. Se houver acordo, se houver governo, se houver vontade, a Europa pode renascer. Na locomotiva estarão de novo, em pé de igualdade, ou quase, a França e a Alemanha, a conduzir os destinos da Europa com a participação plena de 25 outros países, mais ou menos entusiasmados, mais ou menos relutantes. O continente reassumirá então de pleno direito o seu papel de charneira, de exemplo, de força de atracção, combatendo com denodo a concorrência desleal de outros, o apelo protecionista dos velhos aliados além-Atlântico e a sua própria decadência anunciada, talvez precipitadamente, por muitos.
Em Davos, já na próxima semana, se verá, caso o pré-acordo entre o SPD e a CDU seja aprovado e Merkel se decida a participar ao lado de Macron, até que ponto a nova Europa, o comboio europeu assente no sólido eixo franco-alemão, retomará a primeira linha do combate a favor do liberalismo democrático num Mundo globalizado, multilateral, amigo do comércio livre regulado e justo, contra os ventos fortes do iliberalismo, do proteccionismo e do nacionalismo excludente.
Entretanto, do outro lado da Mancha, sopram também ventos fortes, mas desta vez a fazer tremer nas fundações a ideia peregrina do Brexit. Será ainda possível que ele não suceda? Possível é, embora não seja provável. Pela minha parte, insisto: não vai haver Brexit.
Pior do que uma ideia má, só uma péssima ideia, e essa é uma péssima ideia, como os britânicos, afinal, se estão cada vez mais a dar conta.