Correram mundo as declarações do Papa Francisco de que seria um disparate – ‘una tonteria’ – a proclamação de um dogma que declarasse Nossa Senhora corredentora. Como é sabido, os últimos dogmas proclamados pela suprema autoridade eclesial foram marianos: em 1854, foi proclamada a sua imaculada conceição, ou seja, que Maria, por um especialíssimo privilégio, foi concebida sem pecado original; e, em 1950, quase um século depois, foi declarada a sua assunção ao Céu, em corpo e alma.

Como em geral acontece quando o Papa Francisco faz alguma declaração mais espontânea, também agora não faltaram vozes críticas a propósito desta alegada falta de respeito e de devoção pela Mãe de Deus. Algumas pessoas até entenderam que a atitude do Papa Francisco raiava a heresia, na medida em que parecia negar a especial participação de Nossa Senhora no mistério da salvação da humanidade.

A este propósito, convém esclarecer que as declarações de Francisco não são, obviamente, heréticas. É verdade que o actual Papa, ao contrário dos seus dois últimos antecessores na cátedra petrina, não é um teólogo e, por isso, nem sempre se expressa com rigor científico. Assim sendo, algumas das suas afirmações devem ser interpretadas à luz do seu estilo descontraído, que não é inédito, pois São João XXIII, que também não era teólogo, igualmente privilegiava um estilo mais coloquial do que académico.

Em relação a este tema, há que distinguir duas questões: em primeiro lugar, a inegável participação de Maria no mistério da redenção realizada por Jesus Cristo; e, depois, a questão da conveniência, ou não, de uma declaração dogmática que atribua à Mãe de Jesus o título de corredentora. O Papa Francisco não pôs em causa a especial participação de Nossa Senhora na redenção da humanidade; apenas questionou a oportunidade de essa sua colaboração ser definida através de um novo dogma mariano, o que é, diga-se de passagem, perfeitamente lícito em termos teológicos. Há inúmeras designações que a piedade popular atribui à Mãe de Deus, mas não seria razoável que cada uma dessas prerrogativas marianas fosse objecto de uma declaração dogmática da suprema autoridade da Igreja.

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Num artigo do Padre João Baptista Ferraz Costa, do passado dia 14, explica-se como esta doutrina mariológica foi formulada e acolhida pelo magistério eclesial. Já no século X era atribuído à Mãe de Cristo o título de ‘redentora’. A partir do século XIV, Maria passa a ser designada ‘corredentora’, que expressa melhor o carácter subordinado e secundário da sua corredenção, em estreita colaboração com a redenção principal, suficiente e necessária, do seu Filho, que é o único que é, em sentido próprio, redentor.

São Boaventura, que São Afonso Maria de Ligório cita no seu tratado sobre As glórias de Maria, chega a dizer: “Só havia um altar: a cruz do Filho, onde a Mãe era sacrificada juntamente com o Cordeiro divino. Por isso, pergunta-lhe: ‘Ó Maria, onde estáveis? Junto à cruz? Ah! Com muito maior razão digo que estáveis na mesma cruz, imolando-vos crucificada com o vosso Filho.”

Também no magistério pontifício recente, não faltam referências explícitas a Nossa Senhora corredentora. Com efeito, Leão XIII, na encíclica Iucunda semper expectatione, declarou que, “sobre o Calvário, levada por um imenso amor por nós, para dar-nos novamente a vida sobrenatural da graça e ter-nos como filhos espirituais, ofereceu ela mesma o seu Filho à justiça divina e com ele morreu espiritualmente, traspassada por uma espada de dor em seu coração”.

São Pio X, por sua vez, na encíclica Ad diem illum, esclarece que Maria foi associada à obra redentora de Cristo por disposição divina, e não por sua iniciativa. A sua corredenção foi, neste sentido, necessária, porque querida por Deus. Não foi só por vontade própria que Maria se uniu à redenção de Cristo, porque foi Deus que quis associá-la à dolorosa obra de resgate da humanidade.

Na carta apostólica Inter sodalicia, de Bento XV, diz-se: “Maria, no Calvário, aos pés da cruz, sofreu de tal maneira que quase morreu com seu Filho padecente, por um desígnio divino, e imolou o seu Filho para aplacar a justiça divina, de modo que, com razão, se pode dizer que Maria redimiu, juntamente com Cristo, o género humano”.

Pio XII, na encíclica Mystici Corporis, afirmou: “Ela finalmente, suportando com ânimo forte e confiante imensas dores, verdadeira Rainha dos mártires, mais que todos fiéis, ‘completou o que falta à paixão de Cristo … pelo seu corpo que é a Igreja’ (Cl 1, 24), e assistiu ao corpo místico de Cristo, nascido do Coração rasgado do Salvador, com o mesmo amor e solicitude materna com que amamentou e acalentou no berço o menino Deus.”

É interessante que o Papa Pio XII, ao sublinhar a especialíssima colaboração de Maria no sacrifício redentor de Jesus Cristo, cite expressamente umas palavras da Sagrada Escritura, quando São Paulo, na sua epístola aos colossenses, se dá a si mesmo o título de corredentor, na medida em que completou, na sua carne, o que faltava à paixão de Cristo pelo seu corpo, que é a Igreja (Cl 1, 24). Se a redenção é, propriamente, um atributo exclusivo de Jesus Cristo, a corredenção é extensiva não apenas a sua Mãe, Maria, mas também a todos os que, como São Paulo, colaboraram de algum modo no mistério da redenção da humanidade, nomeadamente pelos seus sacrifícios unidos à paixão e morte de Cristo na Cruz.

O primeiro dia do ano é o Dia Mundial da Paz, mas é também a oitava do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo e a solenidade da maternidade divina de Maria. Nossa Senhora, por ter dado à luz um filho que é, ao mesmo tempo, humano e divino é, verdadeiramente, Mãe de Deus. Mas Maria é também corredentora, dada a sua extraordinária participação no mistério da redenção realizada por Jesus Cristo. O Papa Francisco entende que não se justifica a eventual declaração dogmática desta sua prerrogativa, o que em nada ofende a dignidade excelsa daquela que a si mesma se intitulou serva do Senhor (Lc 1, 48), foi a primeira discípula do seu Filho (Lc 8, 21; 11, 28), e é a nossa santíssima Mãe e Rainha.